Em meio a gritos de protestos, num ginásio repleto de políticos, autoridades, movimentos sociais e centenas de índios, o personagem decisivo para o sucesso da audiência pública realizada ontem em Altamira para discutir o projeto da usina hidrelétrica de Belo Monte passou despercebido. Era Paulinho Paiakan, o índio kaiapó que vive na aldeia Aukre, no sul do Pará. Líder respeitado entre os caciques indígenas, foi ele o responsável pela serenidade com que os índios se portaram na audiência e também a peça estratégica do governo para que eles abrissem mão de suas armas durante o evento.
Por volta das 19 horas, ainda longe de a audiência terminar, foi também ele que coordenou a saída de todos os índios. Pouco falaram. Pouco ouviram também, até porque o barulho feito por integrantes dos movimentos sociais impediu que se ouvissem as perguntas durante a audiência. Mas eles entregaram um documento, pedindo algumas compensações e também saíram de lá com o compromisso de que o Ibama passaria em todas as aldeias para esclarecer novamente algumas dúvidas e ouvir suas reivindicações.
Paiakan é favorável à usina, segundo algumas fontes que têm contato com o kaiapó. E como é um índio que conhece bem a língua portuguesa, é considerado muito bem informado. Ao Valor, entretanto, ele não quis falar sobre Belo Monte: disse que estava só de visita. Mas alguns técnicos da Funai presentes ao evento contaram que o convite para sua participação veio da presidência da Fundação.
E foi assim que o governo federal pôde ouvir todas as pessoas interessadas, dando legitimidade ao processo de estudo de impacto ambiental de Belo Monte. O ponto crítico era justamente a participação dos índios. Alguns kaiapós do sul do Pará, no ano passado, em evento patrocinado pelo movimento Xingu Vivo Para Sempre, atacaram um engenheiro da Eletrobrás com facões e a imagem correu o mundo, depondo contra o projeto. O governo não podia correr um novo risco, afinal o tema de se construir uma usina hidrelétrica em meio à Amazônia e cercado por terras indígenas é bastante sensível e com forte repercussão internacional.
O que se viu nas três audiências públicas realizadas nas cidades de Brasil Novo, Vitória do Xingu e ontem em Altamira foi uma mostra da determinação do governo em garantir a realização do leilão da usina neste ano. Para evitar confronto com índios de outras etnias, que não as que estão hoje localizadas nos 11 municípios que serão impactados pela barragem, a secretária da Casa Civil, Erenice Guerra, acionou o órgão máximo de segurança da Presidência: o Gabinete de Segurança Institucional (GSI), que tem entre outras funções a de prevenir e articular gerenciamento de crises, em caso de grave e iminente ameaça à estabilidade institucional.
O esquema de segurança foi chefiado pelo coronel Paulo Barros, que coordena a área de infraestrutura do GSI. Foram mobilizados 285 homens das polícias militar, civil, rodoviária e federal, além da Força Nacional. Uma equipe especial da Funai foi montada para cuidar dos cerca de 150 índios que foram à audiência .
A questão que pode agora atrasar o processo é a ação do Ministério Público Federal (MPF). O procurador Rodrigo Costa e Silva, do MPF em Altamira, questiona a forma como as audiências foram conduzidas e a falta de documentos para análise da sociedade, o que pode iniciar um novo embate judicial. Ele acredita que seriam necessárias um número maior de eventos em outras cidades que também serão atingidas pelo grande fluxo migratório que a obra tende a causar. "Eles estão estudando os impactos desde 2006 e então por que reservar apenas quatro dias para discutir com a população?", perguntou o procurador.
Para a leitura e análise pela sociedade do estudo de impacto ambiental, a lei prevê o prazo de 45 dias. Depois do fim das audiências, que terminam terça-feira em Belém, abre-se o prazo de 15 dias para manifestações por escrito. Segundo Walter Cardeal, diretor da Eletrobrás, a empresa tomou todos os cuidados jurídicos para conduzir as audiências na forma como determina a lei. Já o presidente do Ibama, Roberto Messias, presente ontem ao evento, disse que todos os documentos do EIA foram entregues. Ele diz que o órgão vai analisar o pedido do MPF de se fazer novas audiências.
Mas lembra que a sociedade civil ainda pode se manifestar por escrito nos próximos 15 dias. "E os técnicos do Ibama ainda vão estudar o processo, o que significa que as contribuições ouvidas durante as audiências públicas e as manifestações escritas podem ajudar na alteração de alguns pontos", disse Messias.
O Ministério Público Federal afirma, porém, que a população não teve acesso aos estudos antes das audiências. A não publicação desses documentos foi o que levou a Justiça a conceder liminar que atrasou o processo de licenciamento, há alguns meses.
Diferentemente de Brasil Novo, a audiência pública de Altamira teve uma grande participação popular. Estima-se que compareceram ao evento mais de 5 mil pessoas e os movimentos sociais que são contra a construção da usina mobilizaram uma forte oposição. Fizeram até mesmo um ato simbólico em que queimaram um boneco do presidente da Eletrobrás, José Antônio Lopes Muniz. O barulho feito por eles impediu que se ouvissem as apresentações e as perguntas de algumas pessoas. Foi em Vitória do Xingu, na audiência realizada no sábado, que se pôde ter uma discussão mais aprofundada da questão.
Um dos destaques em Vitória do Xingu foi a presença de acadêmicos de universidades de todo o país, que formaram um painel de especialistas que têm sérios questionamentos sobre os impactos da usina de Belo Monte. Um dos pontos mais críticos é a redução do volume de água a circular na volta grande do rio Xingu, que pode ter um forte impacto ambiental.
Esses acadêmicos também dizem que o estudo não aponta, por exemplo, como a qualidade da água na região será afetada. Ao todo 15 especialistas se debruçaram sobre o EIA, mas em alguns casos não tiveram como estudar a fundo as propostas. A antropóloga Sônia Barbosa Magalhães diz que o estudo do impacto para os cerca de 2 mil índios que vivem nas cidades da região só foram entregues pelo Ibama um dia antes do início da audiência pública. O professor do Instituto de Eletrotécnica e Energia da USP, Francisco Hernandes, questiona ainda a própria viabilidade financeira do projeto já que capacidade média ociosa do empreendimento será de 61%.
De qualquer forma, uma grande parte da população da região quer que o leilão de Belo Monte vá adiante. Esse também é o desejo dos 11 prefeitos daquela área, que se uniram em um consórcio para reivindicar recursos para obras de saneamento e infraestrutura. Laécio Campello, secretário do Meio Ambiente de Placas, governada pelo PSDB, resume a situação: "O momento de ser contra já passou."
(Por Josette Goulart, Valor Econômico / IHUnisinos, 14/09/2009)