Para aumentar as exportações do etanol de cana-de-açúcar e biodiesel, usinas brasileiras precisam provar os benefícios socioambientais da produção junto aos compradores internacionais. Apesar do marketing, não está fácil.
O setor de transporte é responsável por cerca de 25% das emissões mundiais de dióxido de carbono (CO2), de acordo o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma). O dado explica a influência das fontes de energia no debate ambiental e revela também porque a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) criou um Grupo de Trabalho (GT) para acompanhar as negociações internacionais preparatórias à 15ª Conferência das Partes da Convenção das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (COP-15), que acontecerá em dezembro, em Copenhagen, na Dinamarca.
"Se os países desenvolvidos assumirem metas maiores de redução na emissão dos gases de efeito estufa, isso pode significar maior demanda internacional pelo biodiesel e, principalmente, pelo etanol de cana-de-açúcar produzido no Brasil", avaliou Rodrigo Lima, gerente-geral do Instituto de Estudos do Comércio e Negociações Internacionais (Ícone), organização não-governamental (ONG) criada em 2006 por associações do agronegócio.
Conquistar o mercado externo é o principal anseio das 65 usinas de biodiesel existentes no país. As exportações dessa produção atualmente ainda são insignificantes. Uma lei nacional - que exige a mistura obrigatória de 4% de biodiesel ao óleo diesel - gera uma demanda interna de cerca de 1,8 bilhão de litros de biodiesel por ano. A capacidade de produção instalada das usinas é bem superior: 3,8 bilhões de litros por ano. "O governo federal está outorgando licenças para produção de biodiesel sem levar em consideração a demanda atual pelo produto", reclamou Roberto Engels, diretor-executivo da usina Biocapital, localizada em Charqueada (SP).
No caso do combustível de cana-de-açúcar, o mercado interno é mais promissor, mas também insuficiente. Dados da Agência Nacional de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP) revelam que o etanol já é o principal combustível da matriz energética brasileira para carros leves.
No Brasil, os chamados automóveis flex-fuel representam 94,2% das vendas totais; no ano passado, foram licenciados no país 2.065.313 veículos que utilizam gasolina e etanol. O consumo nacional de etanol no primeiro semestre de 2009 foi de 10,7 bilhões de litros, 17,7% a mais que igual período do ano passado. O crescimento da produção de etanol na safra 2008-2009 em relação ao ano agrícola anterior, porém, foi maior: passou de 22,5 bilhões de litros para 27,5 bilhões de litros, ou seja, teve 22% de aumento.
As exportações brasileiras de etanol também estão crescendo (passaram de 3,6 milhões de litros para 4,7 milhões de litros no mesmo período), mas ainda respondem por apenas 0,017% das vendas totais. "Nosso principal desafio é quebrar as barreiras tarifárias e não-tarifárias que países desenvolvidos impuseram ao etanol", declarou Marcos Jank, o presidente da União da Indústria de Cana-de-Açúcar (Unica), durante o Ethanol Summit 2009, principal evento do setor sucroalcooleiro, realizado em junho, em São Paulo.
Guerra de números
No início de maio, a Agência de Proteção Ambiental Americana (EPA, na sigla em inglês) divulgou estudos mostrando que entre os ditos biocombustíveis disponíveis no mercado, o etanol brasileiro é o mais eficiente na redução das emissões de gases de efeito estufa (GEEs), o que o habilita a concorrer às cotas de combustíveis avançados previstas na lei norte-americana para combustíveis renováveis. Comparado às emissões de veículos movidos a gasolina, o etanol de cana-de-açúcar reduziria em média 44% a quantidade de GEEs lançados na atmosfera; já para o etanol de milho a diminuição seria de 16%. Esses índices levaram em conta os gases liberados em todo o ciclo de produção e uso do agrocombustível, desde a lavoura até a estrada.
Apesar do bom resultado, os produtores de etanol no Brasil ficaram insatisfeitos com a avaliação. O ponto mais polêmico do cálculo foi a inclusão do chamado uso indireto da terra: a estimativa do desmatamento ocorrido em função da migração da atividade agropecuária deslocada pelas plantações que servirão de matéria-prima ao biocombustível.
Para o etanol de cana, a emissão indireta responde por 46 dos 73 g de CO2 por megajoule estipulados pelo governo norte-americano; no etanol de milho, de um total de 99 g de CO2 por megajoule, somente 30 viriam do uso indireto da terra. "A EPA prorrogou até 18 de setembro a consulta pública para revisão dos índices divulgados. Por isso, estamos desenvolvendo em parceria com o Fapri, sigla em inglês do Instituto de Pesquisa de Políticas Agrícolas e Alimentares] um modelo de cálculo mais adequado à realidade brasileira", revelou Rodrigo. "Temos 200 milhões de hectares pastagens, com baixa produtividade. A expansão dos canaviais não se dará sobre a floresta.
As diferenças de metodologias no cálculo do ciclo de carbono ficaram evidentes no workshop "Impactos Sócio-Econômicos, Ambientais e de Uso da Terra", promovido em junho pelo Programa Fapesp de Pesquisa em Bioenergia (Bioen), em SP. No evento, foram apresentadas três pesquisas científicas que mediram o balanço de carbono resultante das lavouras de cana-de-açúcar.
No estudo feito pela Universidade de Illinois, o saldo foi negativo: ou seja, no balanço geral, a plantação emitiu GEEs. Na pesquisa do Centro de Energia Nuclear na Agricultura da Universidade de São Paulo (Cena/USP), o resultado foi oposto: as lavouras retiveram mais carbono do que a quantidade emitida pelo preparo do solo. A Embrapa Agrobiologia chegou a uma conclusão semelhante a do Cena/USP, mas ponderou que o acúmulo de carbono nos solos depende do grau de degradação dos mesmos. "Ficou patente, aqui, a incerteza e a variabilidade que cercam os números com os quais trabalhamos", avaliou Heitor Cantarella, coordenador da Divisão de Impactos do Bioen.
Assim como as usinas de etanol e biodiesel no Brasil ficam de olho no mercado internacional, elas próprias estão na mira de importantes compradores externos. No final de 2008, por exemplo, o Parlamento Europeu aprovou a Diretiva Européia, um compromisso voluntário da União Européia (UE) de reduzir 20% de suas emissões de GEEs até 2020 (o ano-base é 1990). Como estratégia para alcançar a meta, a Diretiva determina a adoção de pelo menos 10% de combustíveis renováveis nos transportes até 2010 e estabelece que eles devem passar por um processo de certificação para garantir o cumprimento de regras sociais e ambientais pré-estabelecidas.
Os países membros da UE têm até julho de 2010 para definir os critérios dessa certificação, mas alguns princípios já são consenso, como preservação da biodiversidade e não utilização de trabalho escravo ou degradante. Em ambos, o agrocombustível brasileiro apresenta graves problemas, apesar dos esforços para melhorar sua imagem. Em São Paulo, estado que responde por 60% da produção nacional de etanol, 157 usinas aderiram ao Protocolo Agroambiental proposto pela Secretaria Estadual de Meio Ambiente.
O ponto-chave do acordo é o fim imediato da queima da palha de cana em novos canaviais e o encurtamento do prazo de adequação para lavouras antigas (a lei estadual estabelece 2021 como ano-limite para as lavouras mecanizáveis não utilizarem mais fogo e 2031 para as não-mecanizáveis, prazo adiantado pelo acordo para 2014 e 2017, respectivamente).
O Protocolo, porém, silencia sobre um dos principais gargalos ambientais dos usineiros paulistas: o descumprimento da Reserva Legal, ou seja, dos 20% de vegetação da propriedade que devem ser preservados no bioma Mata Atlântica. "Não dá para chamar de Programa Etanol Verde um protocolo que não exige cumprimento da reserva legal", criticou Mário Mantovani, diretor da ONG ambientalista SOS Mata Atlântica.
No quesito trabalhista, as infrações cometidas pelas usinas de cana-de-açúcar são ainda mais escandalosas. O setor sucroalcooleiro ocupa a liderança no vergonhoso ranking nacional de trabalhadores escravizados no Brasil: no ano passado, 2.553 pessoas foram libertadas nos canaviais (49% do total), conforme dados oficiais reunidos pela Comissão Pastoral da Terra (CPT). Neste ano, até 22 de julho, o Grupo Móvel de Fiscalização coordenado pelo Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) encontrou mais 951 trabalhadores em condições degradantes nas lavouras de cana-de-açúcar, o que representa 47% dos trabalhadores escravizados libertados no período.
No dia 25 de junho, o presidente Lula, garoto-propaganda do etanol brasileiro, lançou o Compromisso Nacional para Aperfeiçoar as Condições de Trabalho na Cana-de-Açúcar. O protocolo foi resultado de uma mesa de diálogo instalada em julho de 2008, composta por representantes do governo, de empresas e dos trabalhadores. Ele não tem força de lei, mas já obteve a adesão voluntária de 323 das 413 usinas em atividade no país. Três delas fazem parte da "lista suja" do trabalho escravo do MTE, o cadastro do governo federal que aponta pessoas físicas e jurídicas responsabilizadas em operações de fiscalização de trabalho escravo. Pelo menos outras 16 já foram flagradas explorando mão-de-obra em condições degradantes.
Se o cultivo de cana-de-açúcar no Brasil é historicamente uma atividade de grandes proprietários de terra, a aposta do governo federal era que as oleaginosas voltadas à produção de biodiesel fortalecessem a agricultura familiar. O Programa Nacional de Produção e Uso de Biodiesel (PNPB), criado em 2004, tinha como meta incluir 200 mil agricultores familiares na cadeia produtiva do biodiesel, até 2008.
A estratégia foi a criação do Selo Combustível Social: um registro obtido pelas usinas que adquirem um percentual mínimo de matéria-prima da agricultura familiar (variável de 10% a 30%, de acordo com a região do país), por meio do qual elas se habilitam a participar de todos os leilões públicos para venda de biodiesel e recebem redução fiscal. Dados divulgados pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) no final de ano passado, porém, mostram que o total de pequenos produtores beneficiados pelo programa ficou bem aquém do previsto: apenas 37 mil pessoas.
Quando se olha para as matérias-primas de fato utilizadas na produção de biodiesel no país, entende-se o motivo: o óleo de soja respondeu por 81,10% do total produzido em junho deste ano. Em segundo lugar, com 14,03%, outro co-produto do agronegócio: o sebo bovino.
Etanol e biodiesel costumam ser chamados de energia limpa. Quem investe neles (como empresários e o governo brasileiro) acredita que a crescente preocupação mundial com as mudanças climáticas globais representa boas oportunidades de negócios. Essa crença está baseada no marketing da sustentabilidade, que faz crer que quem substitui gasolina e diesel por etanol ou biodiesel está contribuindo para tornar o mundo melhor. A sustentação dos agrocombustíveis brasileiros no tripé da sustentabilidade (ambiental, social e econômica), porém, está capenga.
Clique aqui e leia o último relatório sobre soja produzido pelo Centro de Monitoramento de Agrocombustíveis da Repórter Brasil
(Por Thaís Brianezi, Centro de Monitoramento de Agrocombustíveis / Repórter Brasil, 08/09/2009)