Um conselho convocado pelo Conicet [Conselho Nacional de Pesquisas Científicas e Técnicas da Argentina] e pela Comissão sobre Agroquímicos da Argentina elaborou um relatório sobre o agrotóxico glifosato, em que não chega a conclusões claras e não define se ele é inócuo ou prejudicial. Acadêmicos e científicos criticam.
“Avaliação da informação científica vinculada ao glifosato em sua incidência sobre a saúde e o ambiente” é o título do relatório assinado pelo Conselho Interdisciplinar do Conicet e pela Comissão Nacional de Pesquisas sobre Agroquímicos. Seis capítulos e 130 páginas que recompilam estudos e onde é recorrente uma conclusão: a necessidade de pesquisas sobre os efeitos do glifosato. Não se define se ele é inócuo ou prejudicial.
Pesquisadores e cientistas que estudam o tema mostraram-se surpresos com o documento e indicaram críticas. “O objetivo do relatório implica em uma visão reducionista e fragmentária que pretende simplificar uma situação complexa, excluindo o sujeito e parcializando a construção do conhecimento. O relatório é uma simples enumeração de bibliografia, com muito pouca análise crítica, reflexiva e comparativa de seus resultados”, assegurou a doutora em Ciência Naturais Norma Sánchez, professora titular de Ecologia de Pragas da Universidade Nacional de La Plata e pesquisadora independente do Conicet.
O glifosato é o agroquímico base da indústria da soja e é questionado há uma década por seus efeitos adversos à saúde e ao meio ambiente. A presidenta Cristina Fernández criou em janeiro passado a Comissão Nacional de Pesquisa para estudar a problemática.
O relatório analisa temas pontuais e contrapõe bibliografias. O central: relativiza a absorção dérmica do glifosato, a toxicidade aguda e os possíveis efeitos cancerígenos. Reconhece que os estudos que indicam o glifosato e seus componentes como prejudiciais a mamíferos são abundantes e confiáveis e admite que as únicas dúvidas provêm de cientistas da Monsanto, a principal empresa envolvida. Os dados sobre abortos espontâneos, fertilidade reduzida e deformações são aceitos, mas adverte-se que há informação insuficiente.
O relatório também aborda a “experimentação em mamíferos não humanos”, mas pede novos estudos. Considera que “a toxicidade em organismos terrestres é leve ou moderada”. Deixa claro que existem resíduos do agroquímico em solos e águas, mas não define se são tóxicos ou inócuos. Observa o maior risco ambiental da soja transgênica acima da convencional e, por causa da resistência de ervas daninhas, confirma-se a crescente necessidade de uma cada vez maior quantidade de glifosato e agroquímicos cada vez mais potentes.
As críticas ao relatório apontam que ele utiliza bibliografia atravessada, que recorta a problemática e que equipara estudos da Monsanto com trabalhos de cientistas independentes. O principal questionamento indicou a ausência no relatório do princípio precautório, a exigência legal, diante de incertezas, de prevenir possíveis consequências à saúde e ao meio ambiente.
“Isso quer dizer que deve ser suspensa a aplicação do produto em questão até que se realizem estudos pertinentes que demonstrem sua inocuidade. Não é ético nem razoável pesquisar uma vez que o dano já está feito e é irreversível”, defendeu o bioquímico e chefe do Laboratório de Biologia Molecular da Universidade Nacional do Nordeste, Raúl Horacio Lucero.
O relatório do Conicet cita reiteradamente um trabalho de Gary Williams, Robert Kroes e de Ian Munro do ano 2000. Ele o referencia em 32 oportunidades e o utiliza como escudo frente aos estudos críticos sobre glifosato. “A recompilação de Williams foi patrocinada pela empresa Monsanto. O mundo acadêmico sabe disso. Mesmo assim, no relatório, muitas pesquisas independentes foram invalidades pelas observações realizadas por Williams para a Monsanto”, lamentou Fernando Mañas, bolsista do Conicet, especializado en dano genético produzido por glifosato, citado no relatório e com três publicações internacionais sobre a temática.
A página 67 do relatório reconhece que, “utilizando a mesma informação que a Monsanto aceita e difunde”, a EPA (Agência de Proteção Ambiental dos Estados Unidos) classificou o glifosato como pertencente ao “Grupo E” (sem evidência de efeito carcinogênico em humanos). O pesquisador Fernando Mañas explicou que “as pesquisas como a de Williams, a pedido da Monsanto, serviram para que a grande maioria das agências regulatórias classifiquem o herbicida como de baixa toxicidade. O Senasa [Serviço Nacional de Saúde e Qualidade Agroalimentar da Argentina] também atuou assim”.
Com trabalhos publicados sobre o tema, Sánchez introduz outros dois elementos. “O relatório apresenta uma visão claramente produtivista quando fala do uso do glifosato no sistema produtivo. Subestima aspectos ecológicos, sociais e econômicos fundamentais e estreitamente ligados à sustentabilidade agrícola. Não são mencionados livros, relatórios e artigos publicados que fundamentem esses aspectos”, denuncia. “Ele não só não completa a análise da profusa bibliografia de referência disponível, mas também menciona literatura obscura muito enviesada”, advertiu o professor titular de Biologia Evolutiva da Universidade Nacional de Córdoba e Prêmio Nobel Alternativo 2004, Raúl Montenegro.
O jornal Página/12 se comunicou com as diferentes instituições que fazem parte da Comissão Nacional. da Secretaria de Meio Ambiente não houve resposta. A Gerência de Comunicação do INTA [Instituto Nacional de Tecnologia Agropecuária da Argentina] explicou que irá opinar quando a Comissão Nacional autorize. No INTI [Instituto Nacional de Tecnologia Industrial], asseguraram que “a instituição acredita ter realizado todas as contribuições possíveis para a Comissão a partir de seu olhar da tecnologia industrial, e sua participação deixou de ser operativa. Ela não participa mais da Comissão e, por isso, não assinará nenhum relatório que fixe políticas para o futuro que não são de sua competência direta”.
“O relatório deveria ser submetido a um sistema de avaliação científico”, advertiu Montenegro. “As conclusões são inconsistentes e confusas”, resumiu Sánchez e lamentou que o relatório “parece ignorar que a ciência é uma construção social que deve questionar aspectos éticos e contribuir para alterar políticas de ação que não levem ao bem comum”.
(Por Darío Aranda, Página/12 / IHUnisinos / EcoDebate, com tradução de Moisés Sbardelotto, 04/09/2009)