Assim como acontece entre seres humanos, a tradição da pesca cooperativa é repassada por gerações entre os golfinhos. Esta é uma das constatações de pesquisadores do Laboratório de Mamíferos Aquáticos (Lamaq), do Centro de Ciências Biológicas da UFSC, que há mais de 15 anos se dedicam a observar a interação entre o homem e o boto-da-tainha (Tursiops truncatus) na pesca artesanal em Laguna. Esta espécie chama atenção da comunidade científica nacional e internacional por sua relação única no mundo com pescadores artesanais.
Os pescadores aprendem sua atividade com parentes próximos, com os mais velhos ou ainda sozinhos, pela observação. Entre os golfinhos, o aprendizado acontece quando os filhotes acompanham as mães durante a pesca. “Cem por cento dos pescadores entrevistados contaram que o filhote, ainda pequeno, com alguns meses de idade, já acompanha a fêmea e que esta ensina a ele os movimentos usados na pesca cooperativa”, diz o professor Paulo César-Simões Lopes, coordenador do Lamaq e orientador do doutorando Fábio Daura, que em sua tese dá continuidade aos estudos nesse campo. Fábio, que também integra o projeto ´Ecologia e Conservação do boto-da-tainha (Tursiops truncatus)` vem atuando desde agosto de 2007 na região de Laguna.
“Nos dois casos a gente pode ver a transmissão de conhecimento. Homens e golfinhos, dentro de suas comunidades, aprendendo uma ação que é comum: a pesca. Como essa interação exige uma sincronia muito grande, explica porque isso não acontece em outros lugares. Foi preciso um indivíduo boto agir e que o pescador entendesse aquele comportamento para que eles começassem essa sincronia, que foi passando em gerações. Para isso se repetir em outro lugar não será fácil. Não da mesma forma”, avalia Fábio.
Prova disso, lembra, é que esta espécie de golfinho existe no mundo todo, com exceção dos mares polares, mas apenas na Muritânia (África), e no Sul do Brasil, interage com o homem na hora da pesca.
"Botos bons"
Mesmo entre os botos de Laguna há os que pescam sempre, ocasionalmente, e os que nunca atuam dessa forma. Por esse motivo, são classificados pelos pescadores como “botos bons” e “botos ruins”. Entender porque apenas alguns aprendem a cercar as tainhas não é simples. “É difícil investir neste grau de complexidade, mas a escolha deve estar relacionada à aprendizagem, que acontece pela transmissão de informações entre mães e filhos. Se os jovens tiverem estímulo, eles valorizarão o aprendizado”, explica o professor Paulo César-Simões Lopes.
Para os pesquisadores, um fator que pode contribuir para a não colaboração é o risco. “Já houve casos em que o boto foi tarrafeado. Outra vez um filhote foi pego pela rede, fugiu e nunca mais foi visto. Estes eventos não são propositais, os pescadores têm carinho pelo boto, são fatalidades”, conta Paulo Simões, lembrando que apensar da não intensionalidade, estas ocorrências são ameaças.
A pesca ilegal na região de Laguna também reforça esse problema. “Inclusive há conflito entre os pescadores que atuam ilegalmente e os que pescam artesanalmente com os botos. Alguns atuam como fiscalizadores. Fazem denúncias à polícia ambiental ou muitas vezes reclamam com a gente. Estes contribuem para a conservação dos botos”, complementa Fábio Daura.
Educação ambiental
Segundo o doutorando, a partir da relação afetiva e socioeconômica construída com os botos que até recebem nomes, a comunidade valoriza a presença do animal e defende sua conservação. Os pescadores também contribuem com as pesquisas, monitorando os indivíduos, gerando dados para seu acompanhamento e do ambiente lagunar.
A orientação e conscientização a partir do conhecimento é a finalidade das pesquisas, que buscam identificar impactos, suas causas e também práticas adequadas para manter a tradição. As ações nesse campo serão reforçadas em um projeto de educação ambiental que será iniciado na região com apoio da ONG Boto Flipper e Instituto Carijós. A intenção é visitar as escolas, fazer palestras, distribuir material informativo e dialogar com a população, a fim de preservar o boto-da-tainha.
Estudos complementares
Paulo César-Simões Lopes iniciou a pesquisa ´Ecologia comportamental do delfim Tursiops truncatus durante as interações com a pesca artesanal de tainhas`, na década de 90. O estudo deu origem ao livro ´Luar do Delfim`, que trata das interações, da transmissão de culturas e da biologia geral dos botos. Para dar continuidade ao que já foi feito, Fábio Daura desenvolve desde 2007 a pesquisa ´Ecologia e Conservação do boto-da-tainha região de Laguna: uso espacial, estimativa populacional e modelo conceitual de conservação`.
Entre os objetivos específicos de Fábio estão o levantamento do número de indivíduos que frequentam a região de Laguna, a identificação dos que colaboram com os pescadores e quais não têm essa prática e o mapeamento de como eles se distribuem na área. “Vamos tentar entender como eles se distribuem no complexo lagunar e como se organizam em sociedade”, conta Daura.
Dados já levantados e a organização de catálogos de identificação mostram que a população é pequena e residente na região durante todo o ano, se concentra na área onde há maior circulação de água e, conseqüentemente, de presas. São cerca de 60 indivíduos, dos quais aproximadamente a metade colabora com os pescadores.
Mais informações com o professor Paulo César-Simões Lopes ( lamaqsl@ccb.ufsc.br) ou com o doutorando Fábio Daura (daurajorge@yahoo.com.br) / Fone (48) 3721-9626
Saiba Mais
Laguna é frequentada pelo golfinho Tursiops truncatus principalmente para alimentação. Com a observação de seu comportamento, percebeu-se que a interferência dos botos aumentou a eficiência na captura das tainhas por parte dos pescadores. Esta interação criou laços culturais de grande valor socioeconômico tanto para o homem como para os golfinhos.
A interação acontece quando o boto cerca o cardume de tainhas e faz com que elas fiquem encurraladas. Nessa hora o boto mostra seu dorso arcado para fora da água ou bate com a cabeça na superfície, indicando a hora de jogar a tarrafa.
Os golfinhos contribuem com os humanos porque ao pescar assim economizam energia. Quando deixam o peixe encurralado, não estão apenas ajudando a agrupar o cardume para o pescador, mas se beneficiam do ataque para capturar as tainhas que conseguem fugir das redes. Sem este trabalho cooperativo, os botos dificilmente conseguiriam pegar as tainhas em migração, pois elas são extremamente rápidas.
(Por Maria Luiza Gil, com edição de Arley Reis, Agecom, 31/08/2009)