Há muito brasileiro que se orgulha. A segunda maior empresa nacional é também, hoje, a segunda maior mineradora do mundo. Atua nos cinco continentes, do Gabão à China. Em todo o planeta, sua imagem é associada aos principais elementos simbólicos do Brasil, como Carnaval e futebol. No segundo país de maior padrão de riqueza das Américas, o Canadá, a Vale já é a segunda maior empresa privada. Entretanto, sua atuação em terras norte-americanas é um exemplo fabuloso de como a megacorporação brasileira incorpora o mesmo modelo histórico de atuação de seus pares. Após comprar 75,6% da mineradora de níquel Inco em 2006, a transnacional brasileira passou a agir cotidianamente pela redução de direitos trabalhistas canadenses.
No dia 13 de julho, os trabalhadores de duas unidades da Vale-Inco entraram em greve. E, em agosto, a unidade da baia de Voisev juntou-se às de Sudbury e Port Calborne. Cerca de 3,3 mil trabalhadores estão parados em protesto contra a sequência de abusos da empresa. Estão ligados ao sindicato United Steel Workers (USW 6500). Pouco antes, a Vale havia anunciado o desejo de eliminar o sistema canadense de participação nos lucros e terceirizar parte da produção.
Também havia demitido 250 funcionários e questionado o direito ao seniority – aumento de benefícios proporcionalmente ao tempo de trabalho. Desacostumados a esse tipo de tratamento, os trabalhadores canadenses paralisaram imediatamente todas as atividades.
Em 13 de agosto, dois representantes do USW 6500 vieram ao Brasil. Em frente à sede da companhia, no Centro do Rio de Janeiro, Myles Sullivan e Rick Bertrand organizaram um bem-humorado protesto. Um bolo em comemoração ao primeiro mês de greve foi servido aos funcionários da empresa que entravam e saíam do prédio. Talvez pela primeira vez em sua história, o Brasil recebia trabalhadores do chamado Primeiro Mundo em protesto contra a exploração praticada por uma empresa brasileira. Em seguida, foram a Sergipe e Minas Gerais conhecer outras unidades da Vale.
Segundo Rick, vice-presidente da USW local, a participação dos lucros é uma conquista histórica dos canadenses. “Permite que os trabalhadores recebam parte dos benefícios advindos de épocas prósperas e que a empresa seja protegida em épocas difíceis”. Os sindicalistas denunciam que, nos últimos dois anos, a Vale aumentou em 121% a remuneração de seus seis principais executivos. Em 2008, receberam 33 milhões de dólares. A folha total de pagamento da empresa representaria menos de 10% dos custos no país do norte. Mylles conta que, ao entrar no país, a Vale “prometeu o mundo”.
A empresa comprometeu-se com o governo canadense a não demitir em três anos, tendo quebrado a promessa há pouco tempo. O ministro da Indústria local, Tony Clement, veio a público na época defender a atitude da empresa.
“A maioria das demissões ocorreu em cargos de gerência. Eles estão concentrando as decisões no Brasil. Fizeram uma oferta para 400 possíveis aposentados. Querem mudar o sistema inteiro de contratação”, denuncia Rick. A Vale já anunciou publicamente que pretende cortar 900 postos de trabalho no mundo, sendo 423 apenas no Canadá. O país é responsável por cerca de 75% do níquel da empresa. O corte em cargos de gerência não ocorre por acaso. A hierarquização da cadeia produtiva e a concentração das decisões no país de origem é uma estratégia de exploração clássica das megacorporações. A medida cria a relação de dependência.
Disputa estratégica
Advogado da Central Única dos Trabalhadores (CUT), Guilherme Zagallo, considera que a Vale quer reproduzir em outros países o modelo nocivo que pratica no Brasil. “Eles pagam baixos salários, muitas vezes abaixo do mercado. Tem uma grande massa de trabalhadores com padrão de sobrevivência muito baixo, dão pouca atenção à saúde e à segurança do trabalhador e têm pouco respeito às comunidades atingidas”, resume.
A companhia poderia manter as unidades paradas até meados de setembro, devido à baixa demanda, especialmente do mercado chinês. Eles também têm um caixa forte para enfrentar o período de produção escassa, com 22 bilhões de dólares em ativos de liquidez imediata. A disputa é vista como estratégica por ambos os lados. “Nós achamos que essa batalha é muito importante. Vai durar pelo menos um ano, porque, se ela conseguir derrotar os canadenses, estamos liquidados. Em várias regiões”, explica José Drummond, assessor de Relações Internacionais da CUT.
Os trabalhadores canadenses têm tradição de luta. De dimensão nacional, o sindicato paga aos trabalhadores aproximadamente 25% dos seus salários enquanto estão em greve. Já houve greves de nove meses nas regiões, em períodos em que a exploração era bem menos agressiva. “Nós lideramos a indústria de minas no Canadá durante anos. Eles acham que, se conseguirem nos dominar, vai haver um efeito dominó com todos os outros sindicatos”, afirma Rick.
Mesmo com a atuação predatória nos países onde atua, a Vale nem sempre tem uma imagem negativa. A empresa trabalha com os elementos culturais brasileiros na venda de sua marca. “As campanhas publicitárias usam nomes conhecidos e queridos pela população. A Vale vende para a sociedade uma imagem falsa, de empresa sustentável, como se fosse possível para uma mineradora de larga escala. É responsável por grandes danos ao meio ambiente”, denuncia Zagallo.
Nos dois primeiros anos de atuação no Canadá, a Vale lucrou 4,2 bilhões de dólares. Os lucros são o dobro do que a Inco teve nos dez anos que antecederam sua venda (2,2 bilhões de dólares). Globalmente, a empresa lucrou, apenas em 2008, 13,2 bilhões de dólares, equivalente a mais de quatro vezes o valor pelo qual foi “vendida”, em 1997, no governo Fernando Henrique.
No Canadá e no Brasil
O sindicato USW aponta algumas diferenças na relação da Vale com os trabalhadores brasileiros e canadenses.
- Se demitidos, os trabalhadores canadenses têm layoff (em caso de admissão, são os primeiros a ser chamados).
- No Canadá também existe o seniority, aumento dos benefícios proporcionalmente ao tempo de permanência na empresa.
- No Canadá não se pode demitir sem justa causa.
- No Brasil não se tem direito a unidade sindical na base de trabalho.
- No Brasil não existe contratação coletiva.
(Por Leandro Uchoas, Brasil de Fato, 03/09/2009)