Quais razões teriam motivado o governo a mudar as regras do jogo da exploração de petróleo depois das descobertas no pré-sal? Se forem somente aquelas das dimensões das descobertas, do baixo risco envolvido e da preservação dos interesses nacionais, não resistiriam a uma discussão mais aprofundada. O sistema de concessão, ora em vigor, contempla também o caso de grandes jazidas - campos gigantes já haviam sido descobertos em Campos - de riscos geológicos de grandeza variável e de defesa dos interesses pátrios.
Se no cerne da questão estivesse o aumento das participações do Estado, bastaria acrescê-las por simples decreto presidencial. Aparentemente, no entanto, existem outras questões, mais insondáveis do que o próprio pré-sal, envolvendo aspectos ideológicos, partidários e eleitoreiros. De fato, deixando os representantes da indústria preocupados, ansiosos e perplexos, os mentores das mudanças em curso parecem mais interessados em aumentar efetivamente a presença do Estado no setor brasileiro do petróleo.
Desde as primeiras descobertas no pré-sal, em 2007, extirparam-se dos leilões os blocos das áreas correspondentes e, na prática, suspendeu-se o processo de licitação de áreas de exploração, reconhecido e respeitado internacionalmente pela transparência e competência com que a Agência Nacional do Petróleo (ANP) o conduzia. Depois, convocou-se uma douta comissão que, dentro do Executivo, passou meses a portas fechadas interagindo somente entre o governo e a estatal brasileira.
Finalmente, com um ano de atraso sobre o previsto, elaborou-se uma proposta que envolve o abandono do modelo de concessão, a adoção da partilha da produção nas áreas consideradas estratégicas (quais?), a criação de uma empresa 100% estatal para gerenciar a exploração e de um fundo para aplicação dos recursos, supostamente na área social.
A indústria do petróleo e a própria sociedade ainda não foram convocadas a debater estes importantes aspectos e, ao ser mantido o regime de urgência para apreciação da proposta no Congresso, quase não haverá tempo para isso.
Muito haveria a se contrapor à proposta do Executivo. O modelo de concessão é largamente utilizado em países ricos e desenvolvidos com uma tradicional indústria do petróleo, como Estados Unidos, Reino Unido, Noruega e Canadá. O modelo de partilha, que ora se quer introduzir, é largamente aplicado em países produtores menos desenvolvidos, e nem sempre democráticos. A criação de mais uma estatal seria de pouca valia para um país que já conta com a Petrobrás, a ANP, e o próprio Ministério de Minas e Energia.
Tememos pela efetiva aplicação dos recursos do petróleo em áreas sociais como a educação por meio do fundo a ser criado, dadas as malfadadas experiências da CPMF e da CIDE, cujos recursos não foram nem para a saúde nem para o sistema rodoviário brasileiro. O desvio dos ingentes recursos do petróleo para áreas políticas e sociais levou a resultados desastrosos em países produtores como a Venezuela.
Na véspera deste dia, alguns bodes foram retirados da sala de estar. O principal foi retirado a pedido dos governadores dos maiores Estados produtores que temiam a redução de suas participações na distribuição dos recursos da extração do petróleo, justo ressarcimento para quem sofre os impactos ambientais, sociais e culturais decorrentes dessas atividades. Outros bodes permanecem. O regime de urgência para discutir no Congresso que se prometeu retirar, aparentemente retornou.
Existem relevantes e preocupantes lacunas quanto à dimensão dos privilégios da Petrobrás, às dimensões da partilha de produção, ao processo de licitação das áreas, ao destino do petróleo recebido pela União e à sua transformação em dinheiro. Por sua atuação na descoberta do pré-sal, a superação de desafios tecnológicos e o simples fato de ser uma estatal brasileira, a Petrobrás certamente fez por merecer algum tipo de privilégio.
Parece-nos, no entanto, prejudicial às demais empresas de petróleo assegurar-lhe um terço de todos os interesses e a garantia de ser operadora (empresa líder do consórcio) em todos os blocos. Agora, com o envio da proposta para o Congresso esperamos que, mesmo no curto espaço de tempo disponível, se abra finalmente uma discussão desses temas envolvendo principalmente os representantes da indústria e da sociedade.
Entre os primeiros incluímos as empresas de petróleo, os muitos fornecedores de bens e serviços, as universidades e centros de pesquisa e as instituições que os congregam. Entre os demais, espera-se também a mobilização dos consumidores, que continuam pagando caro pelos derivados de petróleo apesar da festejada autossuficiência e do petróleo do pré-sal.
Finalmente, nos preocupamos pelo destino da proposta no Congresso que, também por razões fisiológicas, ideológicas ou eleitoreiras, pode se transformar num Frankstein legislativo nocivo aos interesses da indústria e da sociedade. Ninguém quer isso.
(Por Giuseppe Bacoccoli*, O Estado de S. Paulo, 01/09/2009)
* Giuseppe Bacoccoli é geólogo de petróleo, atuou por 34 anos na Petrobrás, onde trabalhou no primeiro poço exploratório no Brasil, situado no Espírito Santo. É pesquisador visitante do Programa de Recursos Humanos da ANP (PRH-02) junto à COPPE/UFRJ