A articulação realizada pela CNPI, para aprovar um novo Estatuto para os Povos Indígenas, começa a se refletir no Congresso A proposta foi apresentada pelo ministro da Justiça ao presidente da Câmara dos Deputados, que recebeu também uma comissão de lideranças indígenas
A nova proposta de Estatuto dos Povos Indígenas é resultado de dez seminários regionais e várias reuniões promovidas pela Comissão Nacional de Política Indigenista (CNPI), que reúne representantes de órgãos do governo, indigenistas e lideranças indígenas As discussões foram necessárias para atualizar o Estatuto do Índio, de 1973, defasado em relação à Constituição Federal de 1988 e à Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). O resultado das discussões foi apresentado no início do mês ao deputado Michel Temer, presidente da Câmara, onde está parada, há 15 anos, a tramitação do Projeto de Lei (PL) nº 2057/91 do Estatuto das Sociedades Indígenas.
A proposta da CNPI, levada pelo ministro da Justiça, Tarso Genro, tem 249 artigos: institui o poder de polícia da Fundação Nacional do Índio (Funai); trata da gestão territorial e ambiental; das atividades econômicas indígenas e do uso sustentável dos recursos naturais renováveis; regulamenta a exploração de recursos minerais e hídricos, com direito de veto das comunidades afetadas; trata da consulta prévia; traz a possibilidade de os povos indígenas serem remunerados por serviços ambientais e também dispõe sobre saúde e educação, entre outros temas. Veja a proposta de Estatuto da CNPI aqui.
Na última reunião da comissão, que ocorreu dias 13 e 14 de agosto, o Secretário de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça, Pedro Abramovay, declarou o compromisso do governo de ter uma proposta aprovada no Congresso ainda este ano. O objetivo é que seja posto em julgamento o recurso que paralisa a tramitação. Com isso, o PL nº 2057/91 seria submetido a emendas de plenário e depois poderia ser criada uma Comissão Especial para analisá-las e apresentar um substitutivo.
Uma vez que seja aprovado na Câmara, o PL deve ser analisado pelo Senado, e – se sofrer alterações – retornar à Câmara. Abramovay disse que a entrega da proposta, enfatizada por ele como uma prioridade do governo, “foi bem recebida por Temer, que a considera uma agenda positiva”.
Outra prioridade da CNPI é o projeto de lei que cria o Conselho Nacional de Política Indigenista, encaminhado no ano passado pelo governo ao Congresso. Resultado de um ano de trabalho da CNPI, o Conselho, uma vez estabelecido, substituirá a Comissão, criada em caráter temporário, e sua missão será deliberar sobre a política nacional para os povos indígenas.
O clima anti-indígena no Congresso
A discussão sobre a nova lei que vai estabelecer direitos e deveres dos índios de acordo com a Constituição Federal chega em um momento no qual o Congresso está mobilizado para mudar regras e impedir demarcações. Enquanto o PL do novo Estatuto parou de tramitar em 1994, pipocaram dezenas de proposições que alteram a forma como as Terras Indígenas são demarcadas, autorizam a construção de hidrelétricas e hidrovias e regulamentam a exploração de minérios em Tis, entre outras.
Em 2008 foram apresentadas pelo menos 15 novas proposições sobre direitos indígenas. A maioria delas visa a restringir os direitos garantidos na CF de 1988, principalmente submetendo a demarcação de terras ao Congresso Nacional. Deputados apresentaram seis novos projetos de decretos legislativos para sustar atos do executivo relativos a demarcação de terras indígenas.
Parlamentares de Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e de Santa Catarina, por exemplo, apresentaram proposições para sustar as portarias do ministro da Justiça que declaram as Terras Indígenas Manoki, dos índios de mesmo nome, TI Batelão, dos Kaiabi, no Mato Grosso, e a Terra Indígena Ibirama La-Klanô, dos Xokleng, Kaingang e Guarani, em Santa Catarina. E isso, apesar de haver entendimento no Supremo Tribunal Federal (STF) de que as portarias que declaram uma terra como indígena e os decretos que homologam as demarcações ou que regulamentam a forma como as demarcações são feitas, são atos administrativos, e que, portanto, estariam fora do controle do Congresso Nacional - que alcança apenas os atos normativos do Executivo.
Até mesmo o decreto nº 1775/96 ,do Presidente da República, que dispõe sobre o procedimento administrativo de demarcação das terras indígenas, é alvo de uma proposta que pretende suspende-lo. Também a iniciativa da Funai, de finalmente buscar solução adequada para os índios Guarani do Mato Grosso do Sul, repercutiu negativamente na Câmara dos Deputados.
Duas propostas buscam sustar as portarias da Funai de identificação das terras da maior população indígena do País – os Guarani – e a que vive a situação mais dramática. Mortes recorrentes de crianças por desnutrição, desestruturação social, suicídios causados pela privação de acesso à terra e aos recursos naturais necessários à sua sobrevivência física e cultural freqüentam assiduamente as páginas dos jornais.
O desafio é conseguir apoio e mobilização suficientes para fazer com que o PL do Estatuto volte a tramitar e, assim, fazer com que as discussões relativas aos direitos indígenas sejam realizadas dentro do seu contexto, em vez de distribuídas em diferentes proposições.
Demarcação é competência do Executivo e não do Congresso Nacional
O ministro Ayres Britto do STF, relator da ação popular contra a demarcação da Terra Indígena Raposa-Serra do Sol, em Roraima, destacou, em seu extenso voto, durante o julgamento, que a competência pela demarcação é do Executivo e não do Legislativo, como querem alguns parlamentares federais. Em um item especificamente dedicado ao tema, o ministro ajuiza “que somente à União compete instaurar, sequenciar e concluir formalmente o processo demarcatório das Terras Indígenas, tanto quanto efetivá-lo materialmente.
Mas instaurar, sequenciar, concluir e efetivar esse processo por atos situados na esfera de atuação do Poder Executivo Federal, pois as competências deferidas ao Congresso Nacional, com efeito concreto ou sem densidade normativa, se esgotam nos seguintes fazeres...” e passa a citar a autorização para exploração de recursos minerais e hídricos em terras indígenas.
Já que as coordenadas constitucionais são no sentido de que cabe exclusivamente ao Poder Executivo realizar as demarcações, existem propostas no Congresso Nacional para alterar a própria Constituição Federal, indo de encontro ao entendimento de que os artigos que garantem os direitos indígenas são cláusulas pétreas e, portanto, não podem ser alterados.
Depois da segunda parte do julgamento da TI Raposa-Serra do Sol, que confirmou a demarcação, parlamentares de Roraima, como o senador Augusto Botelho, propuseram projetos de lei que alteram o Estatuto do Índio, para permitir, por exemplo, que terceiros não-indígenas possam ter acesso, por meio de parceria, aos recursos naturais exclusivos dos índios. Existem também várias propostas na Câmara e no Senado para regulamentar a exploração de recursos minerais e hídricos.
Obras e a falta de Consulta Prévia
A ausência de definição do que seja de relevante interesse público da União, para justificar as obras que podem ser construídas excepcionalmente em Terras Indígenas, levou um deputado do Mato Grosso a propor um Projeto de Lei Complementar (PLP) que declara rodovias, ferrovias e hidrovias como tais. Enquanto não houver a definição do que seja o relevante interesse da União não pode haver obras em Terras Indígenas que atentem contra o direito dos índios à posse permanente da terra e de usufruto exclusivo dos recursos naturais que nelas existem.
Do Senado veio ainda a proposta do senador Edison Lobão Filho, do PMDB/MA, de alterar o Estatuto do Índio para propor critérios de imputabilidade aos indígenas. O senador, filho do ministro das Minas e Energia, Edison Lobão, agiu possivelmente motivado pelo episódio que envolveu os Kayapó e um engenheiro da Eletronorte, em maio do ano passado, durante encontro para discutir hidrelétricas em Altamira (PA).
Esse encontro ocorreu vinte anos depois de outro realizado na mesma cidade de Altamira, quando os índios recusaram a proposta da Eletronorte de construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte, no Rio Xingu. Em 2008, a empresa voltou com um projeto mais enxuto, mas ainda danoso aos direitos indígenas. Veja mais aqui. Não foram apresentados no Congresso projetos que busquem a eficiência no uso da energia, em prédios públicos, por exemplo, nem de incentivo a novas tecnologias de geração de energia ou de repotenciação de usinas hidrelétricas já instaladas. Criminalizar os índios que protestam em defesa de suas terras e recursos naturais é bem mais fácil.
O direito de consulta dos povos indígenas em relação a medidas administrativas e legislativas que os afetem, previsto na Convenção 169 da OIT, em vigor no Brasil desde 2004, poderia ajudar a criar um espaço de diálogo entre o poder público e comunidades indígenas em casos específicos, mas não vem sendo aplicado, o que pode tornar mais agudos os conflitos como no caso dos Kayapó e a Hidrelétrica Belo Monte. O Decreto Legislativo que autorizou a construção da obra em 2005 não consultou as comunidades indígenas que por ela serão afetadas.
Nesse ambiente hostil aos direitos indígenas, mobilização e fortes alianças serão fundamentais para a aprovação de uma lei que faça jus aos avanços obtidos nos últimos vinte anos.
(ISA / Amazonia.org.br, 26/08/2009)