Países disputam acesso à pesca no lago Vitória
A ilhota de Migingo não parece grande coisa. É uma laje de pedra que não chega a ter meio hectare, repleta de casebres de metal enferrujado, lixo, pescadores de olhar perdido e prostitutas, essencialmente uma favela cercada pelo maior lago da África. Mas a pequena Migingo está bem no meio de uma fronteira lacustre disputada por Quênia e Uganda, e há políticos que ameaçam até uma guerra por sua causa.
A razão? Peixes, muitos deles, mas talvez não o suficiente. A ilha está cercada por cardumes de saborosas —e exportáveis— percas-do-Nilo. Mas o lago Vitória, do qual 30 milhões de miseráveis africanos dependem para sobreviver, pode estar ficando sem esses peixes. Segundo um estudo recente, os estoques de percas-do-Nilo já diminuíram quase 70%, ameaçando um setor que movimenta centenas de milhões de dólares.
Pode haver uma questão ainda maior aqui: o próprio lago está recuando rapidamente. Suas águas baixaram mais de um metro nos últimos dez anos, e algas estão cobrindo a superfície do lago como uma espessa camada de tinta verde, sufocando os peixes. É uma prova irrefutável, segundo ambientalistas, da mudança climática, da superpopulação, da poluição, do desmatamento e de outros males modernos chegando a uma parte da África despreparada para lidar com isso.
“Você tem um ecossistema que está totalmente desequilibrado agora”, disse Nick Nuttall, porta-voz do Programa Ambiental da ONU, que tem observado atentamente o lago Vitória. “Isso deveria ser uma preocupação extrema para qualquer um que se importe com o futuro de 30 milhões de pessoas. As pressões sobre este enorme patrimônio natural da África oriental estão aumentando.”
E também estão aumentando as disputas apaixonadas por Migingo. Num recente jogo de rúgbi entre Quênia e Uganda, a torcida queniana gritava: “Migingo, unida, jamais será vencida”. Em abril, quenianos chegaram a destruir a linha ferroviária que dá acesso a Uganda. Os pescadores de Migingo dizem que os policiais ugandenses que rondam a ilha têm distribuído agressões ultimamente —e, pior, roubado o produto da sua pesca. Uma comissão bilateral de fronteira se debruça sobre empoeirados documentos coloniais para tentar descobrir se Migingo fica no Quênia ou em Uganda, mas o grupo tem sido afetado por problemas financeiros e sentimentos patrióticos rivais. A disputa esquentou neste ano, quando Uganda enviou soldados para ocupar a ilha. Para ira do Quênia, os ugandenses chegaram a fincar uma bandeira.
Até o nível do lago recuar, alguns anos atrás, Migingo mal passava de uma rocha despontando no meio da água, e ninguém parecia ligar. Hoje em dia, ainda é apenas uma elevação enevoada no horizonte, quando vista da costa, embora mais de 300 pessoas vivam ali, a maioria pescadores quenianos. Mas Uganda afirma que Migingo fica em águas suas e que é ilegal que quenianos pesquem ali. O subtexto é que o peixe é essencial para a economia de Uganda, que não tem o desenvolvimento turístico e industrial do Quênia.
A moeda ugandense de 200 xelins tem o selo nacional de um lado e um peixe no outro. A cada ano, Uganda arrecada mais de US$ 100 milhões na exportação de percas-do-Nilo, embora o excesso de pesca e o descontrole ambiental estejam ameaçando isso. A maior parte das indústrias ugandenses ligadas à pesca se limita a 25% da capacidade por causa da falta de peixes, segundo a associação local do setor.
Mas uma coisa é clara, ao menos para os especialistas. “Migingo fica dentro das fronteiras do Quênia”, disse John Donaldson, pesquisador da Unidade Internacional de Pesquisa de Fronteiras, com sede no Reino Unido. Segundo ele, documentos de 1926 colocam claramente a ilha algumas centenas de metros para o lado queniano. De acordo com Henry Aryamanya-Mugisha, diretor da agência ugandense de proteção ambiental, a superpopulação e a superexploração agrícola no lado queniano do lago estão dizimando as áreas de desova dos peixes. Ao mesmo tempo, o desmatamento tem reduzido a quantidade de chuvas que alimentam o lago, e o desenvolvimento recente na região está levando fertilizantes, poluentes industriais e esgoto para a água.
“É muitíssimo triste”, disse Aryamanya-Mugisha. “Está acontecendo rápido demais. Há cinco anos, havia muito peixe.” Por isso Migingo é tão significativa. A água em torno da ilha é relativamente profunda e repleta de percas, e, uma vez lá, os pescadores não gastam muito combustível, porque basicamente jogam a linha e puxam o jantar. “Não há outro lugar assim”, disse o pescador Charles Okumu Chambu.
(Por Jefrey Gettleman, The New York Times / Folha de S. Paulo, 24/08/2009)