Governo, que quer mudar lei para ficar com fatia maior das reservas, diz que estudo sigiloso da Petrobras reitera o potencial do pré-sal
Insatisfeitas com o desenho da nova Lei do Petróleo, empresas estrangeiras produziram um documento em que lançam dúvidas sobre os riscos de explorar petróleo no pré-sal. Intitulado "Risco zero no pré-sal: fato e ficção", o texto foi elaborado por técnicos de duas petrolíferas internacionais para subsidiar seus diretores a influenciar a discussão da proposta do governo, que terá de ser aprovada no Congresso.
O texto diz que "é preciso e urgente confrontar a versão do "risco zero" propalada pelo governo Lula, com amparo da Petrobras". Acrescenta que o pré-sal é "um velho conhecido da indústria petrolífera, que, até a descoberta [do campo] de Tupi, tem desempenhado papel secundário do ponto de vista de sua capacidade de produção comercial". Em conversas reservadas, a ministra Dilma Rousseff (Casa Civil) costuma rebater esse discurso citando que o governo tem um estudo "confidencial e sigiloso" da Petrobras mostrando o potencial da área.
A quem pede acesso ao estudo, ela nega sob o argumento de que o vazamento dele influenciaria o mercado de ações. Inicialmente, especialistas chegaram a apontar reservas de até 100 bilhões de barris no pré-sal. Um dos números com que o governo trabalha é de 50 bilhões de barris. Atualmente, as reservas brasileiras são de cerca de 14 bilhões de barris.
Nos últimos três anos, o sucesso na exploração do pré-sal -30 poços perfurados pela Petrobras e suas sócias, 87% com indícios de hidrocarboneto- reforçou o "risco zero". Para o governo, mudar as regras é uma forma de assegurar à União uma fatia maior nas reservas. O documento das petrolíferas lembra que, no pré-sal brasileiro, foram perfurados 150 poços entre os anos 70 e 90, com taxa de sucesso de 25%. E que os reservatórios que produziram em quantidade satisfatória não chegavam a 10%.
As empresas ressaltam, ainda, que o petróleo do pré-sal em voga nos dias de hoje está em rochas ainda pouco conhecidas -as carbonáticas-, mais especificamente na bacia de Santos. Além disso, elas alegam que ainda é cedo para afirmar que a produção de petróleo terá padrão semelhante em toda a região, porque faltam testes.
Os estudos geológicos indicam que as rochas carbonáticas se encontram em uma faixa distante 300 quilômetros da costa, sob uma camada de sal de dois quilômetros de espessura, cerca de seis quilômetros sob o fundo do mar, entre o Espírito Santo e Santa Catarina. Por enquanto, apenas um poço de Tupi, do pré-sal de Santos, entrou em teste de produção. Nele, as estimativas são de reservas de 5 bilhões a 8 bilhões de barris. O teste, iniciado em maio, foi interrompido em julho por problemas técnicos.
Ex-funcionários da Petrobras, onde trabalharam por mais de 30 anos, os geólogos Wagner Freire e Giuseppe Bacoccoli discordam da tese "risco zero". Para Freire, não há como garantir sucesso apenas por analogia geológica. "As rochas carbonáticas são muito imprevisíveis. Dois reservatórios próximos nessas rochas podem ter características de porosidade e permeabilidade muito distintas. São esses aspectos que determinam a facilidade de o petróleo sair ou não", explica Freire.
Bacoccoli acompanhou as perfurações nos anos 70 e 80 mencionadas no documento das petrolíferas. Segundo ele, é impossível concluir que não há risco nas áreas do pré-sal não perfuradas. "O sucesso nas perfurações feitas até agora foi usado politicamente para mudar as regras do jogo."
Especialistas apontam queda de braço entre estrangeiras e União
A tese das empresas petrolíferas, combatida pelo governo, também não é unanimidade entre especialistas do mercado. Dois ex-funcionários da Petrobras com mais de 30 anos de empresa, o geólogo Renato Bertani e o engenheiro Armando Guedes Coelho, discordam parcialmente dela. "O risco exploratório mostrado até aqui é anormalmente baixo e não deve mudar em áreas mais afastadas", afirma Bertani. "Ainda há um risco de produção, mas nada muito diferente do que a indústria já está acostumada no mundo inteiro", acrescenta.
Para Guedes, os insucessos no pré-sal no passado não devem servir de parâmetro. "A tecnologia e as técnicas de perfuração mudaram", diz. "Toda discussão é, na verdade, uma queda de braço, em que cada um quer tornar a sua parte mais vantajosa." A polêmica está sendo usada para combater a mudança do modelo atual de concessões -em que a empresa vencedora do leilão fica com o óleo produzido- para o de partilha -em que o petróleo é dividido entre a União e as companhias.
O governo não esconde que decidiu modificar a Lei do Petróleo por uma questão "estratégica e nacionalista", justificando que todos os países que fizeram descobertas relevantes no setor fizeram o mesmo para garantir maior controle sobre essas riquezas. A principal crítica das petrolíferas estrangeiras está na decisão do governo de fortalecer o papel da Petrobras no pré-sal. Para elas, o presidente Lula está recriando o monopólio do petróleo no país, o que pode desestimular os investimentos estrangeiros no setor.
De acordo com a versão mais recente da proposta, a Petrobras será a operadora única do pré-sal, terá garantida uma participação mínima de 30% nos consórcios e ainda poderá ser contratada diretamente pela União, sem necessidade de licitação.
(Por Valdo Cruz e Samantha Lima, Folha de S. Paulo, 23/08/2009)