Mesmo sendo uma das bases da alimentação de índios Guajás da comunidade Awá, na região noroeste do Maranhão — divisa com o Pará —, a caça de algumas espécies de primatas pela comunidade indígena não vem sendo uma prática sustentável. Um estudo realizado no Instituto de Biociências (IB) da USP demonstrou que o número de bugios e macacos-prego abatidos está acima da capacidade de reposição populacional das espécies.
De acordo com o biólogo Helbert Medeiros Prado, que apresentou no IB um estudo sobre o tema, as análises que possibilitaram a constatação foram feitas por meio de exames de restos de ossos de animais. “Os fragmentos foram coletados em 1990 pelos pesquisadores Renato Kipnis, do IB, e Helder Queiroz, professor de pós-graduação do Museu Paraense Emílio Goeldi e da Universidade Federal do Pará”, explica Prado. Ele conta que o material era referente a um período de três anos de caça e colhidos no próprio acampamento indígena.
Prado lembra que foram analisados no IB pouco mais de 19 mil fragmentos de ossos de diversos animais. “Só de primatas verificamos cerca de 7 mil”, estima o biólogo. Além de ossos de bugios (Alouatta belzebul) e macacos-prego (Cebus apella), o pesquisador também recebeu restos de macacos cuxiús (Chiropotes satanas) e macacos-de-cheiro (Saimiri sciureus). A partir da análise dos crânios foi possível estimar o quanto se caça a cada ano naquela região. Por intermédio de cálculos e modelos matemáticos, o pesquisador pôde comparar a relação entre a taxa de abate e quantidade de animais nascidos num período de três anos.
Acima do ideal
Os dados apurados apontaram que foram abatidos aproximadamente 312 bugios e 108 macacos-prego no referido período. “De acordo com um modelo de estudo denominamos que foram caçados cerca de 1,32 bugios por quilômetro quadrado por ano [km2/ano]”, explica Prado. Sendo assim, segundo um modelo ideal de sustentabilidade, o índice satisfatório seria de 0,09 animais por km2/ano para os bugios, e 0,35 animais por km2/ano, no caso dos macacos-prego — a pressão de caça foi de 0,46 animais por km2/ano.
“Em ambos os casos fica a constatação de que não há um modelo sustentável de caça”, afirma o biólogo. Além da carne de animais e aquela obtida por meio da pesca, os Guajás também praticam a agricultura itinerante, sendo a mandioca um de seus principais itens em sua subsistência.
Os dados gerados a partir do modelo matemático de sustentabilidade parecem estar corretos, uma vez que existe um consenso entre os Guajás do local de que nos últimos anos tem havido um declínio na quantidade de mamíferos de grande porte, especialmente de primatas, nas proximidades do assentamento. Isso tem forçado os índios a percorrerem distâncias cada vez maiores em suas atividades de caça – o que se configura uma forte evidência de caça não sustentável.
Os Guajás ocupam uma área de aproximadamente 1.700 km2. Prado lembra que as terras indígenas correspondem a 20% da Amazônia Legal Brasileira. “Cerca de 50% do total de áreas protegidas na Amazônia consistem em terras indígenas. Em algumas regiões da Amazônia, como no noroeste do Maranhão, existe uma forte associação entre a presença de terras indígenas e a permanência da cobertura florestal”, descreve. “Nas últimas duas décadas verifica-se cada vez mais, no entanto, que a presença de cobertura vegetal por si só não garante a conservação da biodiversidade de forma abrangente, sobretudo onde há a pressão de caça é intensa”, explica.
Prós e contras
Em seu estudo Prado detectou fatores que atuam positiva e negativamente à sustentabilidade de caça no local. “Podemos destacar como fator favorável, por exemplo, a ausência de comércio de carne de caça entre os Guajás daquela comunidade, além de algumas expedições de caça de longa duração, o que distribui a pressão de caça por uma área mais ampla”, descreve. Ele lembra ainda que no caso dos bugios, houve uma maior quantidade de machos abatidos em relação às fêmeas, o que reduz o impacto sobre a espécie.
Por outro lado, há fatores negativos, como o aumento demográfico indígena naquela comunidade: em 1993 eram 94 na comunidade Awá. Hoje são 150. Há ainda o uso de armas de fogo. “No final dos anos 1980 haviam somente duas armas de fogo na comunidade. Em 1993 quase todos tinham armas de fogo. Atualmente, cerca de 70 possuem os armamentos.”
A pesquisa de mestrado O impacto da caça versus a conservação de primatas numa comunidade indígena Guajá, foi orientada por Renato Kipnis, pesquisador do IB, e Walter Alves Neves, professor do IB, além da colaboração do antropólogo Louis Carlos Forline, da Universidade de Nevada e do Museu Paraense Emílio Goeldi.
(Por Antonio Carlos Quinto, Agência USP / Envolverde, 11/08/2009)