O Brasil tem em 2009 a maior sobra de gás natural de sua história. No total, deixaram de chegar ao mercado 20,4 milhões de metros cúbicos (m³) por dia, em média, equivalente ao volume importado da Bolívia. A sobra de gás é maior que o volume consumido pela indústria de São Paulo. Juntas, as Regiões Sul e Sudeste usam 25 milhões de m³ por dia na indústria. A gigantesca sobra diária é dividida em duas vertentes: 8,72 milhões de m³ são simplesmente queimados na atmosfera a cada dia. Dessa forma, some o gás retirado dos poços produtores que não tem como ser transportado para centros de consumo. Outros 11,7 milhões de m³ tiveram de ser reinjetados nos campos, seja por demanda insuficiente ou falta infraestrutura para transporte.
A gestão da produção de gás natural no Brasil é dificultada pelo fato de que 80% do gás nacional é extraído de poços produtores de petróleo. Ou seja, a Petrobrás não pode simplesmente fechar os poços, sob o risco de danos ao abastecimento nacional de óleo. Por isso, a queima de gás tende a aumentar à medida em que a Petrobrás amplia a produção de petróleo.
Os dados sobre o consumo de gás constam do último relatório do Ministério de Minas e Energia, referente ao mês de maio. A estimativa de especialistas é que o boletim de junho revele sobra ainda maior. De acordo com a Associação Brasileira das Empresas Distribuidoras de Gás Canalizado (Abegás), foram vendidos 40,6 milhões de m³ por dia em junho, ante 41,5 milhões de m³ em maio, ou seja, houve queda de 2,16% na comparação mensal.
Em relação a junho de 2008, o consumo de gás natural registrou recuo ainda maior: 19,35%. Segundo os dados da Abegás, o consumo acumulado no primeiro semestre do ano caiu 27,82% ante mesmo período de 2008. Relatório da associação obtido pela Agência Estado avalia que "mais uma vez os dados demonstram que a falta de uma política energética e o alto preço do insumo têm refletido de forma negativa no consumo".
A superoferta jogou para o nível mínimo a média de gás natural importado da Bolívia, que ficou em 21 milhões de metros cúbicos por dia nos seis primeiros meses do ano. Caso não importe todo esse gás, o contrato prevê que o Brasil pague, ao final de um ano, pelo mínimo previsto, mesmo sem consumir.
A situação hoje é completamente inversa à de dois anos atrás, quando havia risco de um novo racionamento de energia. Também é bastante distinta do cenário de dependência total do gás importado da Bolívia, em 2006, quando o presidente boliviano, Evo Morales, privatizou reservas e trouxe o temor do desabastecimento ao mercado brasileiro. No ano passado, o consumo do gás importado no Brasil esteve próximo ou superior ao máximo contratado de 30 milhões de metros cúbicos por dia.
As causas para a inversão de cenário vieram da combinação entre queda na demanda industrial - causada pela crise - e excesso de chuvas, que encheu reservatórios de hidrelétricas e eliminou a necessidade de acionamento das usinas térmicas a gás. "Não era possível prever um cenário como esse", diz o presidente da Empresa de Pesquisa Energética (EPE), Maurício Tolmasquim, admitindo que a superoferta de energia vai perdurar até 2015. Para ele, a Petrobrás fica refém desse mercado porque precisa dar garantias plenas de fornecimento quando as usinas tiverem de ser acionadas. "Ela não pode sequer fechar contratos flexíveis para essa energia quando os reservatórios estão cheios."
A Agência Estado encaminhou à Petrobrás amplo questionário sobre a produção, abastecimento e sobras de gás natural no País, mas, após três semanas de espera, não obteve resposta. Para todas as perguntas, a companhia disse apenas que "não há problema de abastecimento".
(Por Kelly Lima, O Estado de S.Paulo, 11/09/2009)