A crise no Senado não envolve apenas questões particulares e isoladas em relação às práticas de José Sarney, como bem se sabe. Ela está intimamente ligada inclusive às questões do projeto da hidrelétrica de Belo Monte, como salienta o professor Célio Bermann. No fim do mês de julho, o Bispo de Altamira, Dom Erwin Krautler, conseguiu agendar uma reunião com o presidente Lula, da qual participaram representantes dos movimentos sociais, lideranças políticas e assessores técnicos, além de representantes do governo federal.
O professor Bermann foi apresentado também como assessor técnico de Dom Erwin, que pediu para que ele explicasse diretamente ao presidente porque o projeto de Belo Monte é inviável. “Quando o presidente Lula entrou no recinto da sala de audiências houve uma reorientação da discussão. Aquele debate vivo que estava ocorrendo, cessou”, lembrou, ao descrever a primeira parte deste encontro, durante a entrevista que concedeu à IHU On-Line, por telefone.
Bermann explicitou as razões que apresentou ao presidente Lula. “Embora este fato não tenha sido introduzido na mídia, tanto a oficial quanto a de jornais que fizeram alusão aos resultados da audiência, o presidente Lula realmente pediu: primeiro, o conhecimento do projeto; segundo, a revisão da concepção do projeto, uma vez que ele era inviável sob o ponto de vista técnico e financeiro”, relatou.
Célio Bermann é arquiteto graduado pela Universidade de São Paulo, com especialização em História e Geografia das Populações, pela École des Hautes Études en Sciences Sociales, na França. É mestre em Planejamento Urbano e Regional pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, e doutor em Planejamento de Sistemas Energéticos pela Unicamp. Em 2006, recebeu o título de Livre Docência pela USP. Atualmente, trabalha no Instituto de Eletrotécnica e Energia da USP.
Confira a entrevista.
IHUnisinos – O senhor pode nos contar um pouco sobre como foi a reunião sobre Belo Monte com o presidente Lula no final do mês de julho?
Célio Bermann – A reunião foi organizada pelo secretário pessoal do presidente Lula e foi solicitada pelo bispo de Altamira, Dom Erwin Krautler. O bispo chamou cinco lideranças dos movimentos populares da Bacia do Rio Xingu, dois representantes indígenas, uma representante da população da cidade de Altamira, um representante dos trabalhadores rurais da região e um representante do sindicato dos pequenos produtores da região. Além dessas lideranças, foram convidados dois procuradores do Ministério Público Federal. Depois, há outros nomes que participaram. E eu fui convidado por Dom Erwin como assessor técnico.
Na primeira parte da audiência, a comitiva do bispo e representantes do governo se reuniram sem a presença do presidente Lula, e, de certa forma, foram contrastadas as várias posições sem que se pudesse evoluir no assunto. Mesmo porque, da parte dos representantes do governo, foi mantida aquela posição que caracteriza o debate sobre o projeto de Belo Monte de que o governo apresenta o melhor dos projetos, em que todos os problemas ambientais foram reduzidos e, portanto, a concepção deste projeto é absolutamente viável. E da parte da comitiva de Dom Erwin foram manifestadas várias apreensões, dúvidas e problemas que as populações anteveem com a perspectiva da implantação do empreendimento.
O que é importante observar é que, quando o presidente Lula entrou no recinto da sala de audiências, houve uma reorientação da discussão. Aquele debate vivo que estava ocorrendo, cessou. Dom Erwin tomou a palavra para agradecer a oportunidade histórica de o presidente receber as lideranças da população atingida pelo projeto de Belo Monte e a possibilidade de interlocução com os técnicos do governo. Imediatamente após sua fala, o bispo pediu que eu tomasse a palavra. É importante observar que na primeira versão da pauta da audiência não estava prevista a intervenção da assessoria do bispo. Isso causou surpresa por parte dos técnicos do governo. O importante é que foi uma oportunidade que eu tive para expor diretamente ao presidente Lula as questões de ordem técnica que caracterizam, em minha opinião e de vários acadêmicos, a inviabilidade do empreendimento.
Talvez a questão central que tratei com maior veemência, e que sensibilizou o Presidente da República, foi o fato de que a concepção do projeto é inviável sob o ponto de vista técnico e financeiro. A argumentação que utilizei foi o fato de que a usina tem, no seu projeto, uma potência total a ser instalada superior a 11 mil megawatts. Enquanto que - e esse é um fato principal - esse montante de potência só vai poder ser operado no máximo quatro meses por ano em função da característica do regime hidrológico naquela região.
O fato de o rio ter essa característica é entendido pelos técnicos do governo como uma busca de redução dos problemas sociais e ambientais que ocorreriam se houvesse a necessidade de outros reservatórios rio acima para regularizar a vazão. Mas esta possibilidade de construção de outras usinas não estava mais na ordem do dia. A alegação de que o Conselho Nacional de Política Energética teria definido que apenas Belo Monte seria construído, ampliaria as consequências desastrosas para as populações ribeirinhas e as 24 etnias indígenas na região.
O fato é que esta usina vai operar dois meses por ano com, no máximo, 1800 megawatts. Esse foi o argumento central utilizado e que teve boa receptividade do presidente Lula. Ele, na sua intervenção, chamou a atenção para a necessidade de revisão do projeto, uma vez que não era possível, nas palavras do presidente, se construir 11 mil megawatts a um preço que o governo indica de 6,5 bilhões de reais, mas sabemos, assim como os próprios possíveis construtores, que a ordem de grandeza pode chegar até 30 bilhões de reais. Então, nas palavras do presidente, não é possível construir uma usina de 11 mil megawatts se apenas 4440 estariam disponíveis o ano todo.
Embora este fato não tenha sido introduzido na mídia, tanto a oficial quanto a de jornais que fizeram alusão aos resultados da audiência, o presidente Lula realmente pediu: primeiro, o conhecimento do projeto; segundo, a revisão da sua concepção, uma vez que ele era inviável sob o ponto de vista técnico e financeiro. É isso o que posso dizer em relação aos resultados e sobre como foi a audiência.
E o que significa, para o senhor, a fala de Lula quando diz que Belo Monte não será feito de qualquer forma?
Bermann – É claro que essa é uma figura de linguagem, porque ele fez uma referência explícita ao drama que as populações que moram em áreas que são objeto de empreendimentos hidrelétricos vivenciam por conta das inverdades que os proponentes de projeto acabam ressaltando. O presidente Lula deu uma enorme puxada de orelha nos técnicos quando se referiu ao enorme passivo social que o setor elétrico brasileiro tem em relação às populações atingidas. Citou nominalmente a interlocução que está tendo com o Movimento dos Atingidos por Barragens, no sentido de no seu governo fazer aquilo que é responsabilidade do Estado, que é indenizar e reconstruir as bases materiais de sobrevivência da população. Ele falou em relação ao passado, mas nesse sentido também apontou para a necessidade concreta de que os próximos empreendimentos do setor hidrelétrico, ao invés de decantar benefícios, precisam apontar quais são as consequências negativas desses empreendimentos.
Lula está mesmo receptivo aos questionamentos sobre a construção da Usina de Belo Monte?
Bermann – É claro que podemos estar numa situação em que o presidente, eventualmente, pode ter feito um jogo de cena. Eu não acredito nisso. Pode ser uma posição ingênua minha, mas eu não acredito que naquele instante, na presença do bispo, das lideranças e dos técnicos ele tivesse feito um exercício de proselitismo pura e simplesmente para dizer “veja como estou receptivo a essas demandas, mas no fundo vou prosseguir como sempre”. Eu não acredito nessa possibilidade, embora ela eventualmente precise ser levada em consideração. Isso só será percebido na forma como os fatos vão se desenvolver no futuro.
Quais são os principais questionamentos e pontos a serem levantados antes do leilão de Belo Monte ocorrer?
Bermann – Em resumo é o que falei da viabilidade técnica e econômica. O restante é acessório a essa questão principal. E mais do que isso, ela já está sendo percebida pelos empreendedores do setor. Existe, por parte dessas pessoas, uma percepção de que há uma ausência de uma clareza maior em relação à forma como este empreendimento vai ser efetivamente implementado, uma vez que não é possível que ele não necessite da construção de outras usinas.
Como o senhor analisa as reações que se deram após a reunião com o presidente Lula?
Bermann – Além do dia em que houve a audiência, e o que saiu na imprensa, que não informou o conteúdo da reunião, eu não vi um desdobramento, uma repercussão maior, justamente por essa, não sei se deliberada, ausência do que realmente foi dito pelo presidente naquela reunião.
A forma como a mídia atuou influencia nesse processo?
Bermann – Ao não informar a opinião pública, ela passa uma falsa ideia de que o projeto está mantido, os prazos para estudos ambientais e licitação não tiveram nenhuma reorientação e esta é uma informação falsa do que está acontecendo.
Há alguns anos, Lula também dialogou com Dom Luiz Cappio sobre as obras em torno do Rio São Francisco. Podemos comparar aquela conversa a essa que se deu sobre Belo Monte?
Bermann – Eu acho que são duas situações distintas. Pelo que conheço de Dom Erwin, não há, da parte dele, a intenção de fazer uma greve de fome se o processo da usina hidrelétrica de Belo Monte for levado em frente. É claro que envolve a interlocução do presidente com representantes da Igreja, mas acho que são duas situações bastante distintas.
O que precisa ser notado, e essa é uma avaliação política que estou fazendo, é que a forma como o projeto de Belo Monte tem sido mantido e tocado pelo governo expressa a forma como, sob o ponto de vista político, o atual governo precisou ser refém do PMDB e, particularmente, dos interesses em torno do senador Sarney. Não vamos esquecer que tanto o Ministro de Minas e Energia quanto o presidente da empresa Eletrobrás são notórios homens de Sarney, se prestam aos interesses e articulações dele. Essa é a minha avaliação. O fato de o contexto político ser marcado por esta articulação de interesses torna o governo Lula refém. Tomara que ele consiga superar esta situação em benefício da população brasileira.
(IHUnisinos, 04/08/2009)