Em audiência pública realizada na terça-feira, 28 de julho, na Câmara dos Vereadores de Guajará Mirim – RO, seringueiros, políticos do município e seringalistas afirmaram que os indígenas da terra Rio Negro Ocaia querem invadir e tomar as terras dos seringueiros da reserva extrativista (resex).
A audiência foi realizada a pedido dos seringueiros quando souberam de um GT da Funai que estuda a revisão dos limites da terra Rio Negro Ocaia. A revisão dos limites é uma reivindicação antiga dos povos indígenas que, todos os anos, elaboram documentos reivindicando novos estudos para que tenham suas terras tradicionais de volta. Porém, com a revisão desta demarcação, a terra indígena pegará parte da reserva extrativista e os seringueiros já chegaram a impedir o trabalho da Funai, quando foram fazer levantamento fundiário da área.
Ataques aos direitos indígenas
Durante a audiência, os poucos indígenas presentes (a maioria não foi avisada sobre a audiência, ou ficou sabendo em cima da hora) foram obrigados a escutar verdadeiros insultos. Muitos representantes dos seringueiros e seringalistas chegaram a dizer que os indígenas daquela área não precisam de terra, que todo esse desejo pela área em questão faz parte de uma ganância que é alimentada por Ong’s presentes na cidade e pela Funai.
Elibeu Carmo, chefe da Secretaria de Estado do Meio Ambiente de Rondônia (SEDAM) de Guajará Mirim, acusou os estudos para a correção da demarcação da terra indígena como sendo “um ato unilateral e ilegal por parte da Funai”. Paulo Lima, representando uma das associações de seringueiros ali presentes, afirmou que não estão contra os indígenas, mas contra as instituições que os apóiam.
“Essas Ong’s que apóiam os índios é que não tem nada pra fazer e inventam trabalho, que é lutar por uma terra que nem é dos índios”, disse. Paulo também afirmou que os indígenas não precisam de terra. “A necessidade dos índios não é pra morar na terra, mas é a ambição de ter mais terra. Eles não dão nem conta das terras que já têm”, completou.
A fala dos povos
Apesar da presença escassa, os indígenas tiveram seus direitos de fala defendidos por duas fortes lideranças indígenas e uma indigenista: Eva Kanoé, coordenadora da Coordenação das Nações e Povos Indígenas de Rondônia; Milton Oro Nao coordenador da Organização Indígena Oro Wari e a coordenadora do Cimi de Guajará Mirim, Maria Petronila Neto.
Eva Kanoé, primeira a utilizar a palavra, mostrou a indignação dos povos indígenas com tamanha discriminação em pleno ano de 2009. “Nós indígenas precisamos da terra, é um direito garantindo na constituição e não se pode chegar e dizer que se trata de um processo ilegal, porque não é!”. Ela também rebateu a fala de representantes dos seringueiros afirmando que os indígenas não precisam daquela terra. “Os indígenas é que teriam que estar aqui para dizer se precisam ou não da terra”, completou.
Petronila também questionou a fala dos representantes seringalistas que afirmaram que o estudo para a correta demarcação da terra se trata de um processo ilegal. “Não há nada de ilegal, é tudo garantido pela Constituição Federal”. Segundo a indigenista, o que está havendo é “uma manobra dos grandes seringalistas, madeireiros e políticos para colocar os índios contra os seringueiros e enfraquecer a luta dos que sempre foram explorados”, disse.
Milton Oro Nao ressaltou quantas pessoas já morreram pela terra, seus avós e outros parentes. Ele também pediu que respeitassem os direitos dos povos indígenas e suas necessidades. “Se vocês têm a autoridade de vocês, nós também temos e queremos respeito”, completou.
A audiência continuou com muitos ataques aos direitos indígenas, e uma discriminação muitas vezes disfarçada de boas intenções, afirmando que não existe luta contra os verdadeiros povos da floresta. Presente na audiência, o senador Valdir Raupp evitou fazer ataques e afirmou: “Em terra indígena não se pode mexer. Precisamos ver o que fazer com esta ampliação, mas com as terras desses povos não podemos mexer”, finalizou.
Direito à terra tradicional
Falhas na demarcação da terra indígena Rio Negro Ocaia em Rondônia, pela Funai, motivaram os indígenas da região a lutar por sua terra tradicional, que agora faz parte de uma reserva extrativista (resex). Desde o início da década de 90, quando as lideranças Oro wari começaram a participar do movimento indígena a nível local, regional e nacional, que as comunidades tomaram conhecimento dos direitos constitucionais principalmente no que se refere ao artigo 231, onde é reconhecido o direito à terra tradicional de cada povo. A exemplo de muitos povos cuja demarcação “saiu errada”, eles tomaram a iniciativa de buscar meios para corrigir um erro do passado, cujas conseqüências estão a cada dia prejudicando mais a sobrevivência de seu povo, em plena expansão demográfica.
Para rever a demarcação desta terra, a Funai constituiu um Grupo de Trabalho (GT), analisando a tradicionalidade da terra e permitindo, assim, a correta demarcação da Terra Indígena Rio Negro Ocaia. Com a realização desse GT, a Funai atendeu uma reivindicação antiga dos indígenas que foi encaminhada pela primeira vez em 1998 ao Ministério Público Federal (MPF) e à Presidência da Funai, e que todos os anos eles vêm cobrando através de documentos elaborados nas suas assembléias e durante eventos em Brasília.
Mas a realização destes trabalhos trouxe apreensão aos seringueiros, madeireiros e fazendeiros da região. Não se sabe até hoje porque a área não foi incluída desde o início nos estudos de demarcação da terra indígena, mas a área acabou se tornando parte de uma reserva extrativista, a Resex Pacaas Novos. Mesma assim, em 1995, várias famílias voltaram para a aldeia Barracão Velho, local do primeiro assentamento do SPI, que passaram a chamar aldeia Ocaia II; para os indígenas, essa terra nunca deixou de ser deles, mesmo sendo Resex.Voltaram a fazer suas roças e foram atendidos normalmente pelos órgãos oficiais como Funai, Funasa e Seduc.
Em 1999, uma segunda aldeia, chamada de aldeia Piranha, foi constituída na margem esquerda do rio Negro e conta hoje com aproximadamente 100 pessoas repartidas em 15 casas. Infelizmente, quando a diretoria da Associação de seringueiros Primavera firmou um acordo com a empresa Madereira Marcol dentro de um Plano de manejo Florestal aprovado pela Secretaria de Estado do Meio Ambiente (Sedam), maquinários começaram a abrir uma estrada na margem esquerda do rio Pacaas novos a partir da colocação Lipuna, picadas foram abertas a proximidade das aldeias e devido a pressão da Secretaria e de alguns seringueiros, em 2006 as famílias saíram da aldeia Ocaia II.
A Sedam é gerenciadora da Resex Pacaas Novos desde 1995 e sabe-se que depois de 1995 houve desmatamentos ilegais na Resex Pacaas Novos por alguns seringueiros para formação de pastagens sem que houvesse conhecimento das autoridades competentes. O que se vê hoje na região é a falta de assistência dos órgãos públicos e a saída dos seringueiros desta resex, que passaram a morar na cidade. Apesar de a Sedam informar o número de 60 famílias de seringueiros na região, o que se constata é a
presença de no máximo 15 famílias na reserva.
Um histórico de massacre
As etnias Oro nao´, Oro Eo, Oro At e Oro Jowin, que moram concentrados na T.I. Rio Negro Ocaia,pertencem ao povo Oro wari chamado também Pacaas Novos ou Pakaa Nova. Essas etnias ocupavam o território situado entre a margem esquerda do rio Ouro Preto e a margem direita do rio Pacaas Novos há vários séculos. O território começou a ser invadido no final do século XIX com a chegada da primeira leva de seringueiros.
Entretanto, foi a partir dos anos 1940 que a perseguição se intensificou com mais matança e até rapto de crianças indígenas. Os índios reagiam para defender seu território, mas as forças eram desiguais e aldeias inteiras foram dizimadas por arma de fogo, inclusive metralhadora, a mando de seringalistas.
Um exemplo disso é o massacre que ocorreu na década de 50 na aldeia “Xikem Araye” no igarapé da Gruta, afluente da margem direita do rio Pacaas Novos. A aldeia foi abandonada e a exemplo de muitas outras aldeias ela não foi incluída na demarcação e pertence à Resex Pacaas Novos. Vestígios da aldeia como esteios de casa, cacos de cerâmica, machados de pedra e marcas de balas nos esteios foram registrados pelo GT. Com os massacres, os sobreviventes começaram a fugir para as cabeceiras de igarapés onde o acesso era mais difícil.
Foi em junho de 1961, num desses igarapés, o igarapé Ocaia, afluente do rio Negro e sub-afluente do rio Pacaas Novos, que foram contatados os Oro nao. O SPI juntou os indígenas Oro nao e os sobreviventes dos grupos vizinhos Orojowin, Oro eo e Oro at no acampamento de base localizado na margem esquerda do rio Negro, logo abaixo da foz do igarapé Ocaia numa ilha situada entre os rio Pacaas novos e Rio Negro que hoje pertence à Resex Pacaas Novos e é reivindicada pelos indígenas.
Neste Posto que foi chamado “Barracão Velho”, os indígenas permaneceram uns 15 anos fazendo suas roças e atividades de caça, pesca e coleta. Dezenas de indígenas foram sepultados neste local dizimados por doenças contagiosas como gripe, sarampo e tuberculose. Em 1976 a Funai transferiu o Posto para o atual Posto de acesso mais fácil. Entretanto, os indígenas nunca deixaram de caçar, pescar, quebrar castanha nesta faixa de terra em ilha.
Crescimento da população indígena
Enquanto a Resex está se esvaziando gradativamente, há um crescimento importante da população indígena: Em 1965, o SPI recenseou 399 Oro wari. Em 2009, a Funasa recenseou 3.200 pessoas. Neste intervalo de 44 anos a população aumentou oito vezes. A forte natalidade é reflexo de um povo que foi dizimado e que busca se reconstituir fisicamente.
A população na Terra Indígena Rio Negro Ocaia que fica em torno de 700 pessoas, se seguir o ritmo de crescimento atual, dobrará em menos de 15 anos. Atualmente 300 indígenas estão espalhados na beira do rio Negro e os demais 400 indígenas estão concentrados no posto por falta de opção para morar em outros locais de acesso mais fácil pelo rio ou igarapé. Tudo está se tornando cada vez mais difícil: as roças são cada vez mais distantes e de baixa fertilidade, a caça, o peixe e os frutos do mato são cada vez mais escassos, sem contar que a concentração da população facilita a transmissão de muitas doenças e a poluição das águas do igarapé pela mandioca puba.
Conforme o decreto 1775 do ano de 1995, depois da publicação do resumo do relatório do GT, haverá um tempo para que o estado, município, associações e demais pessoas que se sentirem prejudicadas se manifestem e apresentem a sua defesa. Muita água ainda vai correr no rio Pacaas Novos antes do trabalho final do Ministério da Justiça.
(Por Maíra Heinen, Brasil de Fato, 03/08/2009)