Cada copo de canjica tirado da panela quente de Lucinda Campos Rodrigues é vendido por R$ 1. Essa é uma das fontes de renda da ex-trabalhadora rural, que se transferiu para o núcleo urbano de Campos Lindos (TO) após deixar a zona rural em 2001 - quando perdeu o marido e a soja de larga escala passou a tomar conta das paisagens de Cerrado da localidade.
Com o dinheiro da canjica e as transferências do Bolsa Família, Lucinda, de 47 anos, mantém nove crianças (quatro filhos dela mesma em idade escolar, três netos e mais dois sobrinhos que também vieram do campo para a cidade). A mudança para o núcleo urbano foi determinada pela questão da educação das crianças. "Lá na roça não tem mais estudo para os meninos. Não quero soltar os filhos na rua sem ter quem cuide".
Ela é mãe de oito, e os quatro mais velhos já não vivem mais com ela. Um deles, aliás, ajuda a mãe trabalhando como diarista em fazendas de soja, mais especificamente na catação extenuante de raízes antes do cultivo propriamente dito. Há sucessivos casos de flagrante de trabalho escravo justamente nesta fase de produção do grão mais exportado pelo país.
A forma como Lucinda foi levada a abrir mão do terreno rural que sua família ocupava há décadas ilustra as dificuldades enfrentadas pelos pequenos produtores. Quando ficou viúva, em 2001, nenhum dos filhos tinha idade para trabalhar. Ela então pegou uma roça de arroz do vizinho, colheu tudo e ficou com parte para garantir a sobrevivência da prole. Mas o grande sonho sempre foi conseguir o título da terra em que viviam. O esposo tinha a documentação da área, mas como eles só eram casados apenas no religioso, e não no civil, ela, que é analfabeta e nunca teve recursos de sobra, enfrentou uma peregrinação para tentar obter o registro.
"Depois que ele morreu, chegou uma cobrança de R$ 55 do documento da terra. A minha mãe me deu R$ 50 e o meu sogro me deu R$ 5. Nós mandamos aquele dinheiro e vieram para entregar os títulos. Quando chamaram João Miranda da Silva, nome do meu marido, logo completaram que era falecido", conta. Segundo Lucinda, os responsáveis disseram a ela que não poderiam entregar o título de imediato e pediram para que ela tirasse cópias dos documentos dela, do marido e dos filhos (todos registrados com o nome do pai) a fim de que a troca de nomes pudesse ser feita. A papelada foi entregue no ato e pediram para que ela fizesse uma procuração em nome de um conhecido, para que ele pudesse buscar o título na capital Palmas (TO).
"Nós passamos a declaração para um conhecido nosso chamado Moisés, que foi vereador. Nós votamos nele: era de confiança. Ele disse que era preciso pagar mais R$ 600 para trazer o titulo. Foi então que meu filho - que ainda era pequeno, mas já trabalhava - conversou com o patrão e arrumou um cheque de R$ 500 e mais R$ 100 em dinheiro. Depois de duas semanas, o senhor Moisés retornou informando que o titulo só poderia ser entregue pessoalmente ao dono. Nós já estávamos com muitas necessidades e pegamos o dinheiro para comprar coisa de comer", declara Lucinda, que não conseguiu sair para buscar o titulo da terra em seu nome. "E até hoje está assim", lamenta.
Nascida e criada na comunidade Mateiro (da Serra do Centro, hoje um dos principais pólos da soja do Tocantins), Rosa Moreira da Silva, 55 anos, vive há oito anos na cidade. Dos três filhos, dois se casaram, e apenas um deles, solteiro, ainda mora com ela, junto com a neta de 5 anos de idade. Rosa não esquece, porém, da pressão que ela e sua família sofreram para vender a pequena propriedade de 50 hectares por R$ 3 mil.
Um dos beneficiados pela "titulação pública" controversa do governo Siqueira Campos para a instalação do Projeto Agrícola Campos Lindos, Mauro Ferreira de Freitas, o Maurinho [parceiro da Bunge, grande empresa do setor que preferiu não responder aos questionamentos da reportagem (leia abaixo)], insistia pela saída dos moradores mais antigos do local. "O fazendeiro ameaçava derrubar a casa de trator e o meu marido não era mesmo de briga. Ele resolveu que era melhor sairmos de lá. Mas eu achava que lá era melhor. Plantava minha roça e tirava o que comer. Aqui não tem onde plantar nada. Lá só era ruim porque não tinha escola perto para os meninos estudarem".
Mesmo mais próximos dos bancos escolares, os filhos de Rosa não concluíram o ensino fundamental. Os três trabalham ganhando diárias nas fazendas de soja, como temporários sem carteira assinada. Eles são mais um exemplo da falta de perspectiva para os jovens de Campos Lindos (TO).
Maria do Carmo Torres trabalhou como merendeira numa escola rural. Antes, ela via as famílias intercalarem períodos de um ou dois anos na roça para guardar recursos com um ano mais dedicado aos estudos das crianças. "O ensino melhorou, mas as condições não permitem avanços além do ensino médio. Não dá para estudar fora. A única opção de quem não têm amizade para pegar emprego na prefeitura está nas fazendas de soja, para dirigir trator ou catar raiz".
Fiscalização do grupo móvel composto pelo Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), pelo Ministério Público do Trabalho (MPT) e pela Polícia Federal (PF) encontrou 61 trabalhadores em condições análogas à escravidão na Fazenda Campos Lindos, de propriedade de Paulo Alberto Fachin. Os trabalhadores catavam raízes no preparo do solo para plantio de soja e faziam serviços gerais, como tratorista, mecânico etc. Eles foram aliciados em Balsas (MA) pelo "gato" (intermediário de empreitadas) Firmino Ferreira Feitosa, conhecido como "Bina", e pelo gerente da fazenda, Ricardo Longui.
Os trabalhadores estavam alojados em três barracos de palha na fazenda e em casas precárias na cidade. Nos barracos, não havia vaso sanitário nem chuveiro. O "banheiro" era um cercado de madeira e lona com um buraco. O banho era tomado em córregos. Os alojados na fazenda trabalhavam das 6h às 17h. Os da cidade pegavam o ônibus às 4h e só voltavam às 19h. O recebimento era por produção e o horário de almoço era curto, pois os trabalhadores preferiam não interromper o trabalho e produzir mais para aumentar seus ganhos. Eles descansavam uma vez a cada quinzena, em vez da pausa semanal. Também não havia água potável nas frentes de trabalho. O MPT ajuizou ação contra Paulo Alberto Fachin, "Bina" e Ricardo. O processo administrativo relativo às infrações encontradas na fazenda corre no MTE.
Incentivo a pequenos?
De acordo com dados do IBGE, Campos Lindos (TO) tem 7,6 mil habitantes e uma área de 3,2 mil km². A maior parte dos migrantes que chegaram de outras partes desde a emancipação efetiva (há 16 anos) vieram atraídos pelas promessas de emprego na sojicultura. O núcleo urbano conta hoje com uma única escola municipal de ensino fundamental e outra solitária instituição estadual de ensino fundamental e médio. Não há creches. O Mapa da Pobreza e da Desigualdade 2003, divulgado no final do ano passado pelo mesmo IBGE, posiciona Campos Lindos (TO) como o município com maior porcentagem de pobres (84%) e de extremamente indigentes (62,4%) de todo o país.
O atual prefeito, Jorlênio Menezes Santos (PMDB), foi vice-prefeito na administração passada. Em entrevista à Repórter Brasil, ele admite que a questão fundiária permanece como um entrave não resolvido e demonstra apostar, ao menos em discurso, no estímulo à agricultura familiar - tão pressionada pela expansão da soja no município - para reduzir os níveis extremos de desigualdade.
"Campos Lindos é um município produtor, muito rico, mas tem uma população muito pobre. A explicação lógica para isso é que você tem uma renda concentrada em poucas pessoas, na minoria. E a grande maioria é formada de pessoas pobres", diagnostica Jorlênio. A melhor maneira de mudar essa realidade, segundo ele, é o "incentivo à produção das pequenas propriedades". "Estamos trabalhando para viabilizar o Pronaf [Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar] e procurando uma parceria com o governo estadual para criar uma infraestrutura de estradas vicinais que favoreçam o pequeno produtor".
Quanto ao tema da educação, Jorlênio afirma que está buscando apoio aos jovens que completam o ensino médio por meio do Sistema Universidade Aberta do Brasil (UAB). Trata-se de cursos à distância a partir da demanda dos alunos de cada região por meio de parceria entre os entes federativos. Cabe ao município arcar com a estrutura física para as aulas, que foi prometida pelo prefeito. "A questão da falta de perspectiva para os jovens está ligada à divulgação do potencial que temos aqui para atrair empresas. O município já está com uma folha de pagamento bem inchada e não tem condição de expandir muito essa margem de emprego. Temos que incentivar o comércio, fazendo aquisição do que se produz localmente e gerando empregos, de todas as formas possíveis, aqui dentro da cidade".
Sobre os empregos gerados pelo agronegócio da soja, o prefeito explica que, na época de colheita, parte da mão-de-obra local é absorvida em caráter temporário (aproximadamente 90 dias). A grande maioria dos empregos fixos mais qualificados, contudo, é exercida por pessoas de outras regiões. Por causa desse quadro, Jorlênio diz buscar parcerias com produtores para qualificar campolindenses para esses postos melhores.
Um dos grandes benefícios reais aos moradores da multiplicação acelerada dos campos de soja, na opinião do mandatário local, é a estrada de asfalto que liga o município a Araguaína (TO). "Medidas compensatórias" dos grandes produtores para atendimento dos produtores familiares ainda não foram executadas, confirma Jorlênio. "Até agora, o único tipo de ajuda que eles [agricultores familiares] tiveram foi o Pronaf, que está começando a chegar. Mas não houve nenhuma iniciativa mais específica voltada pra eles. Foi um grande erro do Projeto Agrícola Campos Lindos".
Enquanto o prefeito tenta propagar o discurso em defesa da pequena produção, o município continua, paradoxalmente, promovendo o grão. De 26 a 28 de junho, a prefeitura realizou a 7ª edição anual da Festa da Soja, que contou com colaboradores de peso como a empresa Vale - presente na região, Porto Franco (MA), por meio da Ferrovia Norte-Sul, um dos canais de escoamento da produção de soja -, a Agência de Defesa Agropecuária do Tocantins (Adapec), ligada ao governo estadual, e a Federação da Agricultura e Pecuária do Estado de Tocantins (Faet) e o Serviço Nacional de Aprendizagem Rural (Senar) do Tocantins.
A programação da Festa da Soja inclui palestras técnicas, oficinas, shows e atividades culturais. Parte da chamada "Área Verde" do município é reservada para estandes de máquinas, equipamentos e produtos ligados ao cultivo da soja. Além dos expositores privados, bancos públicos também marcam presença no evento.
Na avaliação de João Benício Cardoso - presidente da Associação dos Plantadores do Alto Tocantins (Planalto), que reúne 49 produtores do Projeto Agrícola Campos Lindos, a Festa da Soja deveria incentivar ainda mais o agronegócio empresarial e a participação qualitativa em termos econômicos "está muito abaixo do que se espera". Ele condena o "caráter político e de festa popular" do evento e cobra mais organização da prefeitura.
Com veneno e sem remédio
A década de 1950 ainda despertava quando o agricultor Cícero Miranda da Silva, 64 anos, veio do Maranhão para a Serra do Centro, em Campos Lindos (TO). Proprietário de 26 hectares de terra titulada, Cícero continua tocando a roça de toco que contribui para a sua subsistência. Ele reclama que, com a instalação do megaprojeto do agronegócio de soja, as casas "ficaram muito próximas das plantações de soja e eles jogam muito veneno".
Dois genros do agricultor aposentado trabalham na soja: são motoristas de máquinas que aplicam agrotóxicos. Mesmo com as carteiras assinadas, não recebem todos os direitos - como o seguro-desemprego -, pois assinam contratos de menos de 60 dias. Cícero calcula que esses temporários ficam com uma porcentagem ínfima da produção. "Tenho um filho que fez uma casinha e um pomar numa terra que fica depois da minha e das terras do Projeto Agrícola. Nós achávamos que era terra devoluta, mas agora ouvimos uma conversa de que é área de Reserva Legal em condomínio".
Uma análise dos mapas do Projeto Agrícola Campos Lindos (veja mapa abaixo: em laranja, a área plantada de soja) permite visualizar o "cercamento" das áreas tituladas de posseiros (em roxo) pelas demarcações apontadas como Reserva Legal em condomínio (em verde) da Associação Planalto. Essas últimas áreas não preenchem inteiramente, mesmo que somadas, a exigência de manutenção de pelo menos 35% da área florestal nativa (mínimo para o bioma Cerrado) e ainda estão flagrantemente sobrepostas a Áreas de Proteção Permanente (APPs), como matas ciliares e entornos das nascentes.
O fundo do lote 29 do Projeto Agrícola, em particular, vem sendo objeto de disputa judicial. A Comarca de Goiatins (GO) chegou a emitir um interdito proibitório - que inadvertidamente foi confundido como liminar de reintegração de posse, mas depois houve restauração do próprio Judiciário.
Para Raimundo Marcelo Lima, que tem 39 anos de Serra do Centro e quatro filhos, o principal impacto da chegada da soja foi "o veneno das plantações que corre para as águas". Ele se mostra preocupado por não saber ao certo qual é o nível de contaminação. "O que sabemos é da destruição de peixes e animais. Sem falar no ar que respiramos, que não vem saudável".
Raimundo e sua esposa estudaram até a 5ª série e a base de sustento da família consiste na agricultura familiar. Ele conta que só não foi expulso porque, antes disso, pequenos produtores resistiram junto com o Sindicato dos Trabalhadores Rurais (STR) local e outras entidades de apoio como a Comissão Pastoral da Terra (CPT). "Tivemos ajuda até do exterior e foi reforçando a luta pela permanência na terra", relata o agricultor.
"O governo queria despejar todo mundo. Porém, isso não chegou a acontecer", complementa Raimundo, que afirma ter sido ameaçado em meados da década de 1990. "Agora temos documentos em mãos desde 2000. A situação foi regularizada e, de lá para cá, não sofremos mais ameaças de interrupção da terra". Mas muita gente abandonou a roça. Raimundo Dias Barbosa, aposentado de 80 anos, deixou o pedaço de terra de 53 hectares e foi morar com o neto numa área de cinco hectares que fica a 2km da cidade. "Nós estamos passando necessidade. Lá não gastava tanto. Tenho muita saudade".
Mesmo algumas das facilidades dos núcleos urbanos, como o atendimento de saúde, não estão disponíveis aos moradores da cidade de Campos Lindos (TO). Existe apenas um precário posto de saúde na área central, chamado pelos moradores de "hospital". Dois clínicos gerais, dentistas e técnicos em enfermagem eventualmente atendem na unidade. Os médicos examinam pacientes somente dez dias do mês. O "hospital" não tem estrutura para partos ou cirurgias, laboratório ou leitos. Nos casos que exigem cuidado extra, os enfermos são levados para Goiatins (TO) ou Araguaína (TO) nas duas ambulâncias municipais.
"Não há remédios. Nem sequer os mais simples contra vermes", descreve Irmã Ilda Maria de Oliveira, que chegou a auxiliar no posto médico durante o ano passado. Segundo ela, a situação vem piorando a cada dia e as autoridades se justificam dizendo que a crise na saúde não afeta apenas o município do Nordeste do Tocantins, mas o país inteiro.
Desamparados, os moradores vão até a casa de Irmã Ilda em busca dos compostos caseiros que ela prepara a partir de itens da natureza. Três a quatro pessoas por dia batem na porta da religiosa atrás das fórmulas e das massagens, pois a maioria não tem como comprar medicamentos na farmácia e há quem prefira produtos naturais. Ela diz ajudar apenas em caráter de emergência e de prevenção. "Sempre oriento a todos: vocês não podem deixar de buscar e de cobrar assistência médica especializada", completa.
"A situação aqui é muito difícil", enfatiza Irmã Ilda. Quem pode, conta ela, não pensa duas vezes em mudar para Balsas (MA) ou Araguaína (TO). Na localidade do interior, a cobiça econômica está muito presente, mas, conforme definição da religiosa, "não se vê o cuidado com a saúde". Grande parte dos problemas de saúde que acometem a população local está relacionada à falta de saneamento básico e à desnutrição. "Quem vem para cá, vem atrás do dinheiro. Os filhos daqui não recebem os benefícios que deveriam receber".
Cidade que não existe
Para João Benício Cardoso, da Associação Planalto, a prefeitura é a principal responsável pela falta de estrutura básica. "A cidade nem existe de verdade porque não é regularizada. Ninguém aqui tem documento de imóveis urbanos", ataca o sojeiro. Para viabilizar o ordenamento legal, o fazendeiro sugere que o prefeito elabore estudos de impacto socioambiental relacionados ao perímetro urbano - medida preventiva que os próprios produtores não tomaram antes de começar a plantar soja no Projeto Agrícola Campos Lindos. A partir de levantamentos técnicos, João Benício sugere ainda que o poder municipal construa uma rede de coleta e tratamento de esgoto e faça funcionar um sistema de coleta de lixo. "É uma demanda que o poder público municipal até agora não se dispôs a assumir".
Mesmo com todas os problemas apontados nos processos de "titulação pública" e de averbação das áreas de Reserva Legal, o presidente da associação insiste na tese de que "tudo está regularizado". O fato é que o último parecer oficial elaborado pelo Instituto Natureza do Tocantins (Naturatins) em 2007 é taxativo no sentido de que os documentos apresentados pelos sojeiros "não atenderam satisfatoriamente às exigências". João Benício responde que eles estão cumprindo o que foi previsto no tardio Estudo e Relatório de Impacto Ambiental (EIA/Rima).
Em complemento, ele declara que 12 Projetos Básicos Ambientais (PBAs) já foram protocolados junto ao Naturatins. "Na área da saúde, já está sendo feito um monitoramento das águas de toda a bacia. Estão sendo analisadas periodicamente amostras de água de todos os rios por uma engenheira agrônoma que é funcionária da associação", coloca José Benício. A promessa é que os PBAs sejam desenvolvidos em espaço que está sendo construído pela entidade. "Nossos projetos atuarão em setores como educação e saúde, em parceria com o poder público. Vamos proporcionar treinamentos periódicos para que os pequenos produtores continuem produzindo. Em parceria com a Adapec, criaremos um posto de coleta para embalagens de agrotóxicos e enviaremos os materiais com segurança às centrais de recebimento, que ficam distantes: em Araguaína (TO), Dianópolis (TO) e Pedro Afonso (TO)".
Nem todos os moradores de Campos Lindos (TO) utilizam a água tratada e a energia elétrica porque não tem dinheiro para pagar as tarifas cobradas. De acordo com o secretário de finanças, Genelito Resplandes de Morais, a arrecadação municipal chega a R$ 600 mil por ano. Segundo ele (que tem apenas 33 anos e já foi vereador em dois mandatos anteriores), a distribuição do montante segue uma ordem de prioridades: primeiro a educação, depois a saúde, e assim por diante. Genelito garante que as empresas de soja são isentas de Imposto de Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) pelo Governo do Estado do Tocantins. Até por isso, adiciona, a gestão estadual repassa uma pequena parcela dos outros impostos ao município.
A reportagem encaminhou um conjunto de perguntas para as multinacionais Bunge e Cargill sobre a atuação das empresas em Campos Lindos (TO). A Bunge, que mantém um silo de armazenamento e incentiva diversos produtores da região, preferiu não responder aos questionamentos. A Cargill, por sua vez, confirmou que está na localidade desde 2002 e que "não tem nenhum programa social específico" voltado para a população local.
Questionada sobre a pobreza do município, a empresa assim respondeu. "Um dos principais objetivos da Cargill em ser pioneira em vários lugares do Brasil é aumentar a riqueza daquele lugar. Vimos isso acontecer em várias cidades do Mato Grosso e Goiás. O principal problema em cidades como Campos Lindos é que a maioria dos produtores não mora no município e, com isso, não temos o efeito multiplicador que temos visto em outras regiões".
Os dados da Cargill sobre empregos na localidade são, no mínimo, chocantes. Apenas oito funcionários fixos trabalham no suporte para a produção anual de 140 mil toneladas de soja pela Cargill. No período de safra, outros 44 são contratados. A empresa refuta as informações do secretário Genelito e alega que não recebe nenhum tipo de benefício fiscal (federal, estadual ou municipal) e não dispõe de financiamentos públicos. A companhia relata ainda que as licenças ambientais até a safra de 2008 estavam regularizadas. Em outubro de 2008, o Naturatins encaminhou novas exigências à multinacional.
Escola Família Agrícola
A experiência de Raimundo Ribeiro da Silva, 51 anos, mostra com crueza a relação desses empreendimentos de soja com a população local. Ele chegou a trabalhar no Projeto Agrícola Campos Lindos. "Os trabalhadores ganham R$ 25 na diária para plantação. Na colheita, é só R$ 20 a diária. O horário de serviço é muito puxado, começa 3h ou 4h da manhã e só vai descansar bem de noite, lá pelas 9h ou 10h da noite". Raimundo realça que, com a soja, "as frutas nativas não existem mais e os nossos animais não podem mais ser criados soltos". Ele é mais um que condena os agrotóxicos. "As cabeceiras dos rios ficam sujas de veneno das plantações de soja. Esses venenos são colocados de oito em oito dias. Quando não é naquelas máquinas, é nos aviões".
Pai de quatro filhos, Raimundo tem duas crianças matriculadas na Escola Família Agrícola (EFA), iniciativa da própria comunidade rural de Campos Lindos (TO). Em sua horta, ele aplica técnicas de adubação orgânica, que permite o plantio sem a necessidade de queimadas (comuns na região).
A partir da necessidade de dar estudo de qualidade para seus filhos, pequenos produtores de Campos Lindos (TO) se organizaram para criar a EFA, com apoio do STR e da CPT. O espaço para a construção da escola foi cedido pelo pai de um dos alunos. A construção do barracão foi feita em mutirão que reuniu as próprias famílias, professores e voluntários.
A escola adota a pedagogia da alternância e conta com uma metodologia própria com acompanhamento de um técnico agrícola. Os alunos não recebem apenas conhecimento teórico, mas têm acesso a técnicas de preparo do solo para agricultura orgânica. São conhecimentos que levam em consideração o meio em que eles vivem e que são utilizados no cotidiano das famílias.
Atualmente, a EFA mantém duas turmas de 15 estudantes. Apesar do ânimo dos participantes diante da viabilização de uma alternativa educacional, os professores e funcionários continuam enfrentando dificuldades. No início deste ano, eles ficaram meses sem receber. A prefeitura fez o pagamento, mas a quantia "encolheu" em relação ao que era pago em 2008. Professores de nível médio estavam recebendo cerca de R$ 900 (vencimento mais ajuda de custo) no ano passado e, em 2009, com Jorlênio como prefeito, ninguém (até mesmo os docentes de nível superior) recebeu mais que R$ 600 mensais.
Também não vem sendo cumprido o contrato entre o poder municipal e a associação de famílias que mantém a EFA. A prefeitura ficou encarregada de bancar o café-da-manhã e o almoço; as merendas e o jantares seriam de responsabilidade dos associados. Em duas quinzenas, a alimentação enviada pela prefeitura foi insuficiente, e as próprias famílias tiveram que arcar com os gastos complementares de alimentação.
Outro problema que ainda não foi resolvido é o da dependência. A Escola Família Agrícola ainda não foi reconhecida como unidade independente e funciona como uma extensão da Escola Municipal de Ensino Fundamental José Edimar de Brito Miranda, que fica no núcleo urbano do município. A EFA não tem autonomia e estrutura própria. A gestão escolar, o apoio pedagógico e outras questões mais burocráticas (como a emissão de boletins, transferências e certificados) estão vinculadas à instituição escolar urbana. O projeto da escola comunitária rural já foi votado pela Câmara dos Vereadores e incluído na Lei Orgânica municipal. Falta ainda o reconhecimento oficial do Ministério da Educação (MEC), com sede em Brasília (DF).
Professor da EFA, João Ramos vê esgotamento da negociação com a prefeitura. "A secretária de educação já chegou a declarar que não quer a nossa presença lá porque incomoda demais. Do jeito que está, estamos correndo o risco de não ter como segurar o próximo ano porque o município não quer dar apoio", completa João. Os reflexos de ordem social e ambiental relacionados à expansão da soja na região voltarão ao centro do debate na audiência pública marcada para sexta-feira (07/08), em Campos Lindos (TO).
Confira o Capítulo 1 do Especial: Município do Tocantins lidera ranking de soja e de pobreza
(Por Maurício Hashizume e Jane Cavalcante, Repórter Brasil, 30/07/2009)