Uma vez por ano, Pierre-Louis de Catheu, agricultor do sul da França, aproveita a temporada de caça ao pato para a praticar a atividade. Nas duas últimas temporadas, o agricultor tem tido problemas com a sua munição. No ano de 2007, o parlamento europeu aprovou a lei que proíbe o uso de chumbo na caça ao pato devido à contaminação que a munição pode provocar nos rios e lagos. Assim, Pierre-Louis e outros caçadores europeus têm tido dificuldade de encontrar outra munição de mesmo calibre e precisão.
Diferente da preocupação europeia, durante as décadas de 1980 e 1990, a corrida pelo ouro atraiu milhares de garimpeiros de toda parte do Brasil para Rondônia. As centenas de garimpos abertos ao longo das margens do rio Madeira retiraram, por meio de dragas, dezenas de toneladas do precioso metal.
Hoje, o minério já não é mais abundante e o garimpo é uma atividade rara nesta região. Dos anos da febre dourada, sobrou apenas alguns garimpeiros persistentes e inúmeros lagos artificiais formados pelas escavações na beira do rio. No fundo desses lagos repousa um grave risco, pois para cada grama de ouro retirado no processo de garimpagem uma grama de mercúrio foi depositado. Com o alagamento das margens o mercúrio deve se espalhar contaminando os peixes e o lençol freático que abastece com água potável a capital, Porto Velho.
Chumbo pra lá, mercúrio pra cá
Através de pesquisas, o filho de Pierre-Louis, o clínico geral de naturalidade francesa, doutor Gilles de Catheu, militante do Conselho Indigenista Missionário que acompanha a saúde e os casos óbitos entre as populações indígena da região de Guajará Mirim desde 1984, denuncia: "O mercúrio é um metal tóxico muito prejudicial à saúde e a contaminação do rio tem provocado graves doenças entre os índios". Gilles lamenta que os investidores europeus que devem explorar a energia produzida pelo rio Madeira não tenham tanta consciência ecológica quanto o parlamento de seu continente.
O estudo em que Gilles se baseia foi publicado pela Fundação Osvaldo Cruz no ano de 2003 e é de autoria Elisabeth C. Oliveira Santos, Fernanda Sagica, Edilson da Silva Brabo, Edvaldo Carlos Brito Loureiro, Iracina Maura de Jesus e Kleber Fayal, do Instituto Evandro Chagas, e Volney de Magalhães Câmara, da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Os pesquisadores revelaram altos teores médios de mercúrio encontrados nas amostras de cabelo de 910 pessoas do povo indígena Paakasnova e se constatou um índice de 8,37 µg/g, superior aos 6 µg/g determinados pela Organização Mundial da Saúde como indicador de exposição.
Como os Pakaasnovas vivem na Bacia do Rio Madeira, o estudo aponta que a contaminação deve ter acontecido por sua principal fonte de alimentação: o peixe. O estudo aponta ainda que o desmatamento também contribui para a mobilização do metal no solo para os ecossistemas aquáticos. Gilles conta que "até finalzinho da década de 1980, não se falava em nenhum tipo de câncer e problemas no sistema nervoso. Daí em diante, os casos de câncer aumentaram muito".
Há anos o doutor tem insistido junto à Fundação Nacional de Saúde (Funasa) para que se faça a coleta e os testes de quantidade de mercúrio nos pacientes indígenas. "Não havia câncer antes do mercúrio. Não há indústria, não há poluição e, tirando o peixe contaminado, a alimentação dos indígenas é boa. Então não existem outros motivos para as doenças", alerta Gilles. O militante do Cimi completa: "o que está para acontecer é uma catástrofe sem precedentes, não só para os índios, mas para toda população que vive nestas bacias, porque os peixes contaminados migram por milhares de quilômetros, sem distinção de estados ou países".
O ataque a vida e cultura dos povos indígenas
Para o povo Oro Wari, quando os trovões descem do céu, as crianças não podem sair para brincar. É preciso deixar o céu acalmar até que volte a folia. Os mais velhos contam que os trovões são a batucada de uma festa dos mortos regada a muita chicha (fermentado de milho) lá de baixo do rio Madeira.
Os Oro Wari estão preocupados com o que pode acontecer com a implantação das usinas hidroelétricas de Jirau e Santo Antônio. "Os nossos parentes mortos estão felizes lá de baixo do rio. A gente pensa: e com a construção das hidroelétricas a empresa vai fechar a água vai atrapalhar tudo e perturbar o que tiver lá em baixo. Sem contar as explosões", reclama Eleazer Oro Wari. da terra indígena de Laje.
Além da agressão cultural, o cacique de Eleazar, José Oro Wari ressalta outra grave preocupação dividida com outros 24 povos da bacia do rio Madeira: "A gente sabe que vai ser prejudicado, vai ficar difícil para nós, porque vai espantar a caça e a pesca […], a gente depende disso". Assim, como todos os outros povos da bacia do rio Madeira, os Oro Wari têm na pesca a sua principal alimentação.
Ao contrário do que estabelece a Constituição Federal e a declaração dos povos indígenas da ONU, as comunidades tradicionais não foram consultadas a respeito da obras que devem provocar profundos impactos em seus territórios e modo de vida. "A gente não foi consultado. Se fizer uma barreira como a gente vai fazer sem peixe? E esse rio não é das empresas, ela não pode vir aqui e ganhar dinheiro. Há muitos anos que a gente está aqui, a gente precisa do peixe que vive nesse rio", argumenta o professor Eleazar.
Governo troca floresta grilada por floresta submersa
Para defender grandes produtores rurais e o projeto das hidrelétrica, em junho deste ano, o ministro do Meio Ambiente, Carlos Minc, aceitou a proposta do governador de Rondônia, Ivo Cassol, de trocar parte da Floresta Nacional do Bom Futuro por duas áreas de preservação estaduais, Rio Vermelho A e B.
Na proposta firmada entre os governos, dos atuais 2.700 km² da reserva federal, 1.400 serão repassados a Rondônia, sendo que metade servirá para assentar as famílias que moram no local e outra parte se transformará em floresta estadual. As reservas que serão repassadas ao governo federal serão a Rio Vermelho A e Rio Vermelho B, que, somadas, dão 1.800 km². Grande parte (o Ministério do Meio Ambiente não sabe dizer quanto) das duas reservas serão inundadas.
A Floresta Nacional do Bom Futuro é uma das reservas nacionais mais devastadas, dentro dela vivem cerca de 3 mil pessoas, entre pequenos, médios e grandes produtores rurais que possuem até 20 mil cabeças de gado.
(Por Cristiano Navarro, Brasil de Fato, 21/07/2009)