No ano de 1907, um magnata estadunidense com o nome de Percival Farquhar recebeu a concessão pública do governo brasileiro para iniciar, no coração da Amazônia brasileira, a construção da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, que liga Porto Velho a Guajará-Mirim, atual estado de Rondônia. Pelos registros oficiais da empresa Madeira-Mamoré Railway Company, de propriedade de Farquhar, 1552 trabalhadores morreram em sua construção por doenças ou acidentes de trabalho. Devido ao rastro de mortes, a linha de ferro ficou conhecida como a “Ferrovia do Diabo”.
A linha foi construída com o objetivo de ultrapassar o trecho de cachoeiras do rio Madeira para facilitar o escoamento da borracha boliviana e brasileira e outras mercadorias, para exportação. A partir de Porto Velho, as mercadorias seguiam por via fluvial pelo rio Amazonas até chegar ao Oceano Atlântico e de lá encontrar o mercado exterior.
No dia 1º de agosto de 1912 a ferrovia foi inaugurada com 366 km. O ano coincidiu com o declínio do preço da borracha devido à concorrência dos seringais do sudeste asiático e a invenção da borracha sintética. Depois de 54 anos de atividades, 1966, o presidente da República, Humberto de Alencar Castelo Branco, ordenou o fechamento da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré por entender que esta só dava prejuízos. No seu lugar seria construída a rodovia, BR-364, que liga Porto Velho à Guajará-Mirim, conhecida nas décadas seguintes como a “Rodovia do Ouro”.
Um século depois da inauguração da Ferrovia do Diabo, o governo brasileiro, em pareceria com empresas privadas transnacionais, anunciou, para o mesmo trecho do rio, o início das atividades do complexo de hidrelétricas do Madeira, que contará na primeira etapa do projeto com as usinas de Santo Antônio e Jirau. Juntos, os empreendimentos devem gerar 6.450 megawatts por hora (MW), o que corresponde à metade da potência da usina de Itaipu.
Para o estado de Rondônia, não há novidades no projeto do complexo de hidrelétricas do rio Madeira. Trata-se de mais uma etapa dos ciclos econômicos de exploração dos recursos humanos e naturais (como os ciclos fracassados da borracha, da ocupação fundiária e do ouro) por grandes empresas iniciadas em anos passados. Nesses períodos, dezenas de milhares de pessoas de outros estados migraram para lá em busca de trabalho e terra. Em sua história, Rondônia jamais teve à frente um administrador nascido em seus limites.
Faraônico
O projeto do complexo de hidrelétricas do rio Madeira compreende a construção de Santo Antônio, Jirau, Guajará e Cachoera Esperança (do lado da Bolívia); a construção de eclusas, hidrovias e de uma linha de transmissão de 3070 km que sairá de Porto Velho para abastecer São Paulo.
Segundo o Movimento dos Atingidos por Barragem (MAB), cerca 5 mil pessoas serão expulsas de suas casas para implementação de Jirau e Santo Antônio. Para a construção das duas hidrelétricas e suas eclusas serão investidos R$ 28 bilhões. Ao todo, serão inundados mais de 500 quilômetros quadrados de terras.
Exportação energética
O sociólogo professor a Universidade Federal e Rondônia, Luis Fernando Novoa Garzon, explica que o projeto para o rio Madeira é parte da opção política do governo federal de fortalecer o modelo de aliança com grandes monopólios especializados nos recursos naturais e agrícolas. “Os países centrais carecem de energia barata e esse é o grande insumo do setor de celulose, do setor de alumínio, do setor metalúrgico. Então, a energia barata no Brasil significa a viabilização e a consolidação desse modelo depredador de recursos naturais e a Amazônia é o grande estoque desses recursos. Então, você casar uma fonte de energia em expansão com esses enclaves é tudo que os setores empresariais, especialmente internacionais que estão postados no Brasil, desejam”, afirma.
Além da energia que servirá, principalmente, para as suas indústrias de alumínio, siderurgia, celulose, papel de grandes cidades do centro-sul do país, o megaprojeto tem em curso o mesmo objetivo empreendido na “Ferrovia do Diabo”: vencer o trecho de cachoeiras do maior afluente do rio Amazonas garantindo o escoamento hidroviário dos recursos naturais da região amazônica de forma barata e rápida.
Socialização dos riscos
Os custos do empreendimento financeiros ficam em sua maior parte por parte do governo. Mas, além do risco do investimento financeiro, especialmente assumido por parte do Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), o banco assumiu riscos sociais e financeiros.
“O investimento público deveria ser muito mais rigoroso, criterioso, especialmente quando se trata de impactos ambientais, sociais e territoriais assume do que bancos privados. O projeto é majoritariamente privado, as concessionárias são privadas, a energia do seu ponto de vista do consumo final será utilizada esse consumo pelas grandes empresas e o banco público é que financia todo esse sistema. Então, é como se o governo estivesse dando todas as possibilidades de viabilização, que do ponto de vista de mercado, não há”, avalia o professor Novoa.
Um povo além das margens do rio
Os fortes interesses econômicos e políticos em torno da rápida construção do complexo hidrelétrico do rio Madeira desaguam sobre dezenas de comunidades de agricultores, pescadores e indígenas. As primeiras 48 famílias de pescadores e agricultores a serem expulsas pelo projeto deixaram de viver na comunidade de Engenho Velho para viver na agrovila Novo Engenho Velho. O início da construção da barragem de Santo Antônio foi o motivo da retirada. Para as famílias, foi oferecido um lote de três hectares, indenização e um salário mínimo e meio durante um ano. Nem todas aceitaram, algumas optaram simplesmente por mudar para Porto Velho.
“Por mim não sairia do Engenho Velho, mas não tinha como. Além disso, a empresa prometeu muita coisa que não cumpriu. A terra aqui é ruim para plantar e os peixes que eles prometeram, 15 quilos por mês, não chegam”, reclama João Antonio, morador da agrovila Novo Engenho Velho.
A história de vida das pessoas em breve poderá estar submersa. O casal Ceci Luiz Pereira Sales, pescador, 56 anos, e Maria de Fátima da Silva Sales, dona de casa, 53 anos, nasceram, se conheceram, casaram, tiveram sete filhos e 11 netos na vila de Paraná. As lembranças e as visitas dos técnicos e representantes das empresas têm trazido melancolia para o casal. “A gente nem imagina como seria a vida fora daqui, nossa família toda está aqui”, lamenta o pescador que há 35 anos vive dos peixes do rio.
Muitas famílias que podem ser expulsas pela construção das hidroelétricas já foram vítimas de um outro empreendimento semelhante tocado na década de 1980: a hidrelétrica de Samuel. Violenta, a expulsão pegou as famílias de surpresa que, às pressas, fugiram do lugar onde viviam.
É o caso de Conceição da Silva, militante do MAB e moradora da comunidade de Araras. “Em 1982, quando fui expulsa de Samuel, de uma hora para outra, era época de ditadura, ninguém nem podia reclamar. Ou você saia ou a água cobria”, lembra. Conceição mudou-se para comunidade Araras onde passou a viver do garimpo. Em 1998, tentou a vida na capital de Rondônia, mas voltou para Araras por “não se acostumar mais com a cidade”, onde se encontra sobre o risco de ser atingida pelas complexas hidrelétricas do rio Madeira.
As fronteiras do rio
Do outro lado do rio, a três minutos de barco, em frente à comunidade onde vive Conceição, se encontra, já do lado boliviano, o município de Nueva Esperanza. A comunidade não está incluída nos estudos de impacto ambiental do governo brasileiro que afirma que ela não será atingida pelo projeto. Assim como todos os moradores de seu município, sem informações, Maria Rodriguez Bustamante, vice-presidente do conselho municipal de Nueva Esperanza, se perguntava: “como pode atingir o outro lado do rio e este não? O rio não conhece a fronteira”.
Há pouco mais de um ano, as informações sobre o complexo do rio Madeira chegaram por meio da vizinha militante do MAB e a comunidade que vive basicamente da agricultura da coleta de castanha do pará passou a se mobilizar. “Graças a Conceição estamos reunindo as vozes de Brasil e Bolívia. Agora nos mobilizamos e fomos denunciar nossa situação em Porto Velho e em Belém, no Fórum [Social Mundial]”, conta Bustamante.
Mais de 100 km ao sul do rio, Heber Muñoz Burgos, dirigente da Central Sindical Única de Trabalhadores Campesinos de Guayaramirín (CSUTCG), descreve os autores do projeto como “rapinas que fixaram seus olhos sobre a Amazônia”. Preparado para o embate, o dirigente analisa: “sabemos que o que querem é sacar nossos recursos naturais e explorar as fronteiras agrícolas de soja na Bolívia e no Peru, mas por aqui eles não passarão”.
“O governo Evo Morales não conhece o projeto porque é da região andina, acreditamos que com pressão e marchas do povo da Amazônia ele terá que mudar de idéia”, conjectura Burgos.
Improbidade
As incertezas e reações do povo do rio encontraram eco no Ministério Público Federal (MPF) e no Ministério Público de Rondônia (MP/RO), que moveram uma ação civil pública de improbidade administrativa contra o presidente do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), Roberto Messias Franco.
Os dois órgãos entraram com ação particular contra Roberto devido ao fato de este ter emitido a licença de instalação da usina hidrelétrica de Jirau em desacordo com a legislação ambiental e com a lei de licitações. Na licença prévia da usina de Jirau foram fixadas 32 condicionantes que deveriam ser cumpridas para a emissão da licença de instalação. No dia 25 de maio deste ano, o Ibama manifestou-se contrário à expedição da segunda licença da usina hidrelétrica Jirau porque 12 das 32 condicionantes da licença prévia apresentam alguma pendência.
Presidente do Ibama é processado por improbidade administrativa
Consciente dos riscos de um grave desastre ambiental e submerso em irregularidades jurídicas, o governo brasileiro segue desenvolvendo de forma apressada a construção das usina hidroelétricas de Jirau e Santo Antônio no rio Madeira, um dos principais afluentes do Amazonas. A pressa atende aos interesses eleitorais e às demandas de transnacionais sobre a exploração de recursos naturais. O mega-projeto avança sobre a vida de milhares ribeirinhos, indígenas, pequenos agricultores e até mesmo de grupos indígenas isolados.
Sobre as irregularidades verificadas no projeto, o Ministério Público Federal (MPF) e o Ministério Público de Rondônia (MP/RO) moveram, no dia 7, uma ação civil pública de improbidade administrativa contra o presidente do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), Roberto Messias Franco. Os dois órgãos entraram com ação particular contra Roberto devido ao fato de este ter emitido a licença de instalação da usina hidrelétrica de Jirau em desacordo com a legislação ambiental e com a lei de licitações."Movemos a ação pessoal por entender que o gestor tem que administrar de acordo com o que os estudos ambientais ordenam", afirma a procuradora da República em Rondônia, Nádia Simas. Se condenado, o presidente do Ibama pode perder a função pública e pagar multa de 100 vezes o valor de seu salário.
Os Ministérios Públicos explicam que o licenciamento ambiental é composto por três tipos de licença: prévia, de instalação e de operação. Na licença prévia da usina de Jirau foram fixadas 32 condicionantes que deveriam ser cumpridas para a emissão da licença de instalação. Em 25 de maio deste ano, o Ibama manifestou-se contrário à expedição da segunda licença da usina hidrelétrica Jirau porque 12 das 32 condicionantes da licença prévia apresentam alguma pendência. Além disso, o órgão ambiental concluiu que o projeto do consórcio Energia Sustentável do Brasil ainda era "incipiente, precisando de informações e comprovação dos estudos de impacto ambiental".
Oito dias após os técnicos do Ibama terem se manifestado contrários à expedição da licença de instalação, Franco emitiu a licença com validade de quatro anos e condicionada ao cumprimento das condicionantes da licença prévia. Para os MPs, ao liberar a licença de instalação, o presidente do Ibama violou a Constituição Federal e a lei de licitações, não observou o processo de licenciamento ambiental, desconsiderou a existência de novos impactos ambientais e a necessidade de cumprimento de todas as condicionantes da licença prévia antes da emissão da nova licença.
Com base nisso, os MPs argumentam que Roberto Messias incorreu em ato de improbidade administrativa e beneficiou de forma indevida o consórcio Energia Sustentável do Brasil, causando prejuízos irreparáveis ao meio ambiente. Na ação, os MPs afirmam que a emissão da licença de instalação é "um dos maiores crimes ambientais impostos à sociedade numa época de consolidação dos princípios democráticos e do reconhecimento da importância do ambiente natural para o equilíbrio do clima e da preservação da vida".
Condicionantes não cumpridas
Os MPs afirmam que a primeira questão a ser respondida é com relação à segurança da barragem porque ainda não existe qualquer solução apresentada para a gestão das toras e detritos. O rio Madeira tem esse nome por ter grande quantidade de toras que descem por seu curso. Outra condicionante não cumprida refere-se à apresentação de programas e projetos que compatibilizem a oferta e a procura de serviços públicos, considerando o aumento da população por causa da construção da hidrelétrica. Também não foi mencionada como será feita a recuperação de áreas degradadas pela construção e pela inundação da cidade de Mutum-Paraná.
Além disso, os MPs enfatizam que é preciso saber como será possível a reprodução dos peixes migratórios com o barramento e os bolsões de sedimentos que vão se acumular no leito do rio e informam que permanece a necessidade de fornecimento dos desenhos de engenharia atualizados e com todas as informações que permitam uma análise específica do assunto.
Os MPs também ressaltam que não houve até o momento o monitoramento de ovos, larvas e juvenis de dourada, piramutaba, babão, tambaqui e pirapitinga, de forma a verificar o comportamento destes peixes no estado natural do rio e como esse comportamento pode ser alterado após a barragem. Segundo os órgãos, esta informação pode evitar a mortalidade de peixes com a construção.
Mudança de local da usina
O consórcio Energia Sustentável do Brasil venceu o leilão da usina hidrelétrica de Jirau em 19 de maio de 2008. Logo após, o consórcio anunciou que a usina seria instalada nove quilômetros adiante, na Cachoeira do Inferno, e não mais na Cachoeira de Jirau. E justificou que a mudança resultaria em economia do custo da obra devido à redução da quantidade de área a ser escavada e alegou, conseqüentemente, suposto menor impacto ambiental.
Para os MPs, essas mudanças possibilitaram que o consórcio vencesse o leilão, oferecendo o menor valor para a produção de energia hidrelétrica. "Alteração do eixo principal da UHE Jirau representa não uma mera alteração de localidade, como pretendem fazer crer as autoridades, mas uma modificação complexa, com alterações que implicam impactos ambientais que extrapolam os contornos inicialmente previstos porque a exata localização do empreendimento é fundamental para delimitar a área de influência do projeto, as medidas mitigadoras e compensatórias, a quantidade e localização das audiências públicas, bem como a viabilidade ambiental do empreendimento", argumentam os autores da ação, os procuradores da República Heitor Alves Soares e Nádia Simas e a promotora de Justiça Aidee Maria Moser Torquato Luiz.
Por causa da mudança, os MPs ajuizaram em agosto de 2008 uma ação civil pública contra a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), o Ibama e o consórcio Energia Sustentável do Brasil, e pediram a anulação do leilão. A ação ainda tramita na Justiça Federal em Rondônia. Na época, o Ministério Público estadual também recomendou que o presidente do Ibama cumprisse a legislação ambiental e não emitisse a licença prévia, o que não foi atendido. Por emitir a primeira licença, Franco responde à outra ação de improbidade administrativa.
A reportagem procurou a presidência do Ibama que se recusou a conversar sobre o caso, afirmando que só se pronunciará sobre o licenciamento até que tenha recebido a notificação do processo oficial.
(Por Cristiano Navarro, Brasil de Fato, 21/07/2009)