Uma campanha propõe um dia vegetariano por semana para frear o maior emissor de CO2: o gado. A ideia bate de frente com uma tendência global de abuso no consumo de carne como sinal de riqueza. Gado está na ponta da mira dos ecologistas não apenas pelo CO2 que emite através de seu sistema digestivo.
A ecologia contra a pecuária? Uma nova e surpreendente batalha irrompe no front ambiental: reduzir o consumo de carne nos países ricos seria um método rápido e eficaz para que cada cidadão contribua para frear o aquecimento global. Menos consumo de carne implicaria em menos rebanho e menos emissões. Mas a proposta, apoiada por celebridades como Paul McCartney, bate de frente com a tendência crescente do consumo de carne em todo o mundo, na qual se destacam as regiões emergentes como sinal da riqueza conquistada. Sabia-se que abusar da carne não era saudável. Agora, além disso, não é verde.
A campanha foi posta em prática no Reino Unido com o lema Segunda-feira sem carne. O objetivo: converter-se em vegetariano um dia por semana para reduzir as emissões de gases de efeito estufa. Segundo o ex-Beatle, é uma forma de contribuir individualmente e sem grandes esforços na batalha contra o aquecimento global. A carne pode ser medida em emissões de CO2: consumir um quilo de carne bovina equivale a viajar 250 quilômetros de carro. O gado está na ponta da mira dos ecologistas não apenas pelo CO2 que emite através de seu sistema digestivo. Também porque para a sua alimentação são desmatadas grandes extensões de florestas. Em defesa do gado comparece o setor pecuário, que abriga nada menos que 1.3 milhão de pessoas no mundo, e a demanda do consumidor, que pede mais filés.
A FAO (Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação) calculou em 2006 que o setor pecuário emite mais gases de efeito estufa – 18%, medido em seu equivalente em dióxido de carbono – que o setor dos transportes. Dessa porcentagem, boa parte corresponde ao gás metano, com um potencial de acumular calor 23 vezes maior que o CO2. O sistema digestivo dos ruminantes, especialmente do gado bovino, faz com que estes animais emitam metano através de arrotos e flatulências. Além disso, grandes extensões de florestas, sobretudo na América Latina, foram dizimadas para convertê-las em pastos ou produzir forragens para alimentar o gado. E o estrume produz óxido nitroso, com um potencial 296 vezes maior de aquecimento global que o CO2.
“Extensões cada vez maiores de terras são destinadas ao cultivo da soja, com a finalidade de utilizá-la como proteína para as rações, sobretudo na Argentina e no Brasil”, explica Miguel Ángel Soto, especialista em desmatamento do Greenpeace Espanha. “Em 2006, elaboramos um relatório no qual fizemos algumas observações às grandes empresas produtoras de soja e aos maiores importadores europeus, como o McDonald’s. Os frangos dos McNuggets se alimentavam com soja produzida em granjas situadas em áreas de desmatamento. Levamos os diretores da multinacional a esses locais para que o vissem”, explica Soto.
Como decorrência da viagem, a empresa se uniu a uma moratória sobre a compra de soja procedente de áreas de desmatamento recente, em cuja elaboração participou o Governo brasileiro. Segundo o Greenpeace, a intensidade do desmatamento flutua de acordo com os preços da carne e da soja. Quando o preço de ambos os produtos cai nos mercados internacionais, o ritmo do corte de árvores se reduz no ano seguinte.
“90% da soja produzida na América Latina é destinada à alimentação animal nos países ricos. Um filé que se come na Espanha, por exemplo, muito provavelmente terá vindo de um boi europeu alimentado com produtos brasileiros, plantados em terras onde antes havia árvores ou floresta”, explica Lasse Bruun, porta-voz da Compassion in World Farming, uma das ONGs que se somou à iniciativa de McCartney. “Uma mudança de comportamento nos consumidores seria muito importante”, opina Bruun, que também luta para que o tema seja incluído na Cúpula Mundial do Clima que acontecerá em dezembro próximo em Copenhague (Dinamarca). Mesmo que em seguida matize: “Obviamente, é um tema que se entrelaça com valores culturais, com o que se considera ser um bom nível de vida”.
A carne e o leite são símbolos de bem-estar. Os países em desenvolvimento não querem ficar de fora e começam a copiar os hábitos alimentares ocidentais. Na China e na Índia já se toma leite e se come carne bovina. Além disso, o consumo de carne no mundo será multiplicado por dois em meados deste século, segundo a FAO. Pelo lado da oferta, uma drástica redução do consumo seria também problemática: cerca de 1.3 milhão de pessoas subsistem graças ao setor pecuário.
Uma voz de peso apóia a campanha. Trata-se de Rajendra Pachauri, presidente do Painel Intergovernamental para a Mudança Climática da ONU e Prêmio Nobel da Paz em 2007. Em uma conferência em Londres, em 2006, o cientista indiano explicou que “um granjeiro pode alimentar 30 pessoas durante um ano com um hectare de terra se produzir vegetais, frutas e cereais. Se a mesma área for utilizada para produzir ovos, leite ou carne, o número cai para entre cinco e 10 pessoas”. Mas a linha da FAO não é a de apoiar uma redução do consumo. Ao menos não como receita para todos os países. “Não é uma boa recomendação em escala global, porque os países pobres devem aumentar o consumo de carne em suas dietas”, defende Pierre Gerber, responsável pelas políticas pecuaristas do organismo.
Nos países ricos, entretanto, come-se muita carne. A Espanha não é uma exceção. Cerca de 120 quilos por ano, segundo a FAO, mais que qualquer outro país europeu. Desde os anos 1960, quando se tem os primeiro dados, o consumo não parou de crescer. “Até 1984, a dieta na Espanha seguia praticamente ao pé da letra os padrões da dieta mediterrânea, da qual estamos nos afastando progressivamente, porque ingerimos menos hidratos de carbono e mais proteínas, ou seja, menos legumes e pão e mais alimentos ricos em proteínas como a carne”, detalha José Manuel Ávila, da Sociedade Espanhola de Nutrição. “Deveríamos adaptar a nossa dieta ao nosso gasto de proteínas, comer de tudo um pouco menos e tratar de substituir parte das proteínas por hidratos de carbono”, aconselha Ávila, que acredita que uma campanha como a de McCartney na Espanha seria boa. “O consumo recomendado [de carne] é de oito vezes ao mês”. Ou seja, duas vezes por semana. “Mesmo que a carne, na sua exata medida, seja muito necessária”, matiza.
O Fórum Mundial de Pesquisa sobre o Câncer, situado no Reino Unido, recomenda limitar o consumo da carne vermelha, como o boi, o suíno ou a ovelha, e evitar por completo as carnes processadas – como o bacon ou o salame. Para reduzir o risco de ter câncer, o consumo não deveria ser superior a meio quilo por semana.
O impacto da pecuária sobre a mudança climática varia de acordo com os sistemas de produção, explica Gerber. Em um sistema extensivo, as emissões do gado são maiores, por quilo de proteína obtida, porque são necessárias mais cabeças de gado para produzir uma mesma quantidade de carne ou leite. Quando a produção é mais intensiva, estas diminuem. No último estágio da produção, uma nova intensificação volta a aumentar as emissões, porque o alimento percorre distâncias bem maiores – muitas vezes vem de áreas desmatadas – ou porque se consome mais energia na exploração. A poluição não é igual para bovinos, suínos ou frangos. Segundo Gerber, “um quarto das emissões do setor são dos ruminantes, sobretudo dos bois”. “Para cada quilo de proteína de carne bovina, são produzidas entre três e quatro vezes mais gases de efeito estufa do que com a mesma quantidade de proteína de carne de frango, em países da OCDE”, precisa.
Tampouco todas as vacas são iguais quando o assunto é gases de efeito estufa. As vacas leiteiras expulsam o dobro de metano. E as que têm terneiros, ainda mais. “Entre 200 e 250 quilos por ano”, explica Frank Mitloehner, especialista em qualidade do ar do Departamento de Ciência Animal da Universidade da Califórnia. Ele e a sua equipe começaram a estudar o impacto da indústria bovina no ar e na mudança climática porque observaram que a qualidade do ar no lugar em que se encontra a sua Universidade, o Vale de São Joaquim, era das piores de todo os Estados Unidos. E esse mesmo Vale tem uma concentração enorme de fábricas de produção de leite. “Há vacas por todos os lados”, segundo o cientista. Exatamente: dois milhões de vacas leiteiras, a maior concentração do mundo. “Nos perguntamos se ambas as coisas [a presença de muitas vacas e a má qualidade do ar] poderiam estar relacionadas, e constatamos que sim, parcialmente”, relata Mitloehner. O estrume contém amoníaco que, combinado como os gases emitidos pelos carros, “dá lugar a pequenas partículas que poluem o ambiente”.
Mitloehner fechou várias dezenas de vacas em “biobolhas”, uma espécie de estufa de 40 metros de comprimento e 20 de largura, com repartições em que os animais se movem em grupos de 10. “Assim medimos as emissões”, explica. Neste projeto pioneiro, o pesquisador descobriu que “os arrotos das vacas representam mais da metade das emissões” de gases de efeito estufa. O resto provém do estrume.
Os dados do relatório da FAO, argumenta Mitloehner, exigem um matiz fundamental. “A FAO fala de que mundialmente o setor pecuário emite 18% de todos os gases de efeito estufa. Essa cifra, no entanto, esconde que as emissões relacionadas com a pecuária nos países ricos representam apenas 3% do total”. A razão é simples: nos países ricos há uma variedade maior de fontes de emissões, razão pela qual a importância relativa da pecuária é menor. “Em alguns países pobres, a pecuária representa até 60% de todos os gases deste tipo emitidos”.
Isto pode explicar porque na Espanha o setor pecuário representa apenas 3% do total de emissões, segundo dados do Ministério do Meio Ambiente e Meio Rural e Marinho, mesmo que nos pastos e granjas haja mais de seis milhões de vacas. “A metade provém da fermentação intestinal, ou seja, dos arrotos e das flatulências das vacas, e a outra metade do estrume”, explica Carlos Escribano, diretor-geral de recursos agrícolas e de pecuária. O Ministério aprovou este ano o Plano Nacional de Biodigestão de Purinas, que inclui ajudas aos pecuaristas para diminuir a emissão de gases de efeito estufa. O orçamento é de 80 milhões de euros para os próximos quatro anos, que será administrado a meia pelo Ministério e as Comunidades Autônomas. O dinheiro será destinado ao transporte do estrume a instalações para a produção de biogás e adubo para a roça. “Para os produtores de gado, desfazer-se dos resíduos é um problema também econômico”, disse Escribano, “o que pretendemos é dar-lhes alternativas”.
“O plano se centra no estrume líquido, o das vacas leiteiras”, aponta Javier López, porta-voz da Associação Espanhola de Produtores de Gado de Corte. López defende que o sistema de produção bovina na Espanha é “muito diferente dos outros países europeus, e inclusive mundial”, o que implica em que as emissões sejam comparativamente menores. “A alimentação a base de grãos faz com que as vacas produzam menos metano e, além disso, na Espanha se consome carne de animais muito jovens. Os bichos são sacrificados quando completam entre 10 e 15 meses, e os estudos científicos dizem que o gado mais jovem produz menos metano”, destaca López.
Em todo o caso, a defesa dos produtores vai além dos dados. Opinam que “o tema está sendo exasperado”. Segundo López, “é ridículo pensar que comer menos carne vai resolver o problema da mudança climática. Tolhe-se as pessoas na sua alimentação, e depois não se questiona o modelo consumista de energia em que vivemos”. E arremata: “É certo que Paul McCartney não se coloca a questão da utilização do ar condicionado, ou das viagens de avião e de jet privado para o outro lado do mundo. Há muita demagogia”.
A cidade de Gante, na Bélgica, foi a primeira a aderir ao clube e declarou as terças-feiras “dia vegetariano”. Vários chefs no Reino Unido apoiaram o projeto de McCartney e criaram receitas vegetarianas para a página da campanha na internet. A receita desta semana é do próprio McCartney: “A salada de Paul para lamber os dedos”. Folhas de espinafre e rúcula, tomates cherry, abacate e queijo.
(Por Antía Castedo, com tradução do Cepat, El País / IHUnisinos / Envolverde, 27/07/2009)