Entre um empate e outro nas florestas do Acre, o seringueiro Chico Mendes reunia sua gente para traçar os próximos passos de resistência. Os tempos andavam difíceis: sob uma chuva de créditos e deduções tributárias vindas generosamente do governo federal, as motosserras trabalhavam como nunca, e o gado avançava mata adentro. Enquanto a imprensa local jogava confetes sobre os novos fazendeiros, chamando-os de “grandes empresários”, um jornaleco nascia em maio de 1977 acusando-os de agressores do meio ambiente. Não demorou para se tornar material obrigatório nas reuniões dos seringueiros.
Sob o nome de Varadouro e com o slogan “Um jornal das selvas”, o periódico surgia “rude, caboclo, sem técnica”, como já anunciava seu primeiro editorial. Entrou para o rol da chamada imprensa alternativa, que pipocava pelo Brasil nos anos de chumbo. E ganhou notoriedade justamente por ter peitado os grandes, mesmo sendo o “patinho feio dos alternativos”, como definiu o jornalista acriano Elson Martins, editor e um dos idealizadores do boletim.
Trinta e dois anos depois, sua história está sendo resgatada. Uma por uma, as 24 edições que rodaram entre 1977 e 1981 serão digitalizadas e jogadas no site da Biblioteca da Floresta, instituição estadual de cultura. Com os textos comentados, a iniciativa traz à tona uma época de violência e devastação que teria ficado à sombra. Não fosse um jornal “cheio de limitações, feito propositadamente aqui na ‘terra’”.
A nova Canaã
Estava tudo pronto para a integração da Amazônia à economia nacional. Mal assumiram o poder e os militares já tiraram da manga um plano pomposo para aquela inóspita região. Com o slogan “Terra sem homens para homens sem terra”, a ocupação do território foi regada a créditos fartos e incentivos fiscais atraentes. Se a cidade de Manaus (AM) foi a escolhida para abrigar a porção industrial do programa, o restante do bioma ficou encarregado de acolher a boiada. Encantados com a prosperidade repentina que lhes batia à porta, os estados fizeram coro com a campanha federal. Wanderley Dantas, governador do Acre entre 1971 e 1975, fez ecoar no sul do país as maravilhas de sua terra: “Acre, a nova Canaã: Invista no Acre e exporte pelo Pacífico”, diziam os anúncios.
Deu certo. Se no início da década de 1970 a população local não passava de 220 mil habitantes, dez anos depois 500 mil cabeças de gado já se espalhavam pelo eldorado acriano. “Antes do Varadouro, o acontecimento era festejado pelas elites locais”, recorda Elson Martins. “Toda a imprensa daqui defendia o fim do extrativismo e festejava a pecuária”.
Indígenas e seringueiros, que até então se satisfaziam com o extrativismo da borracha e da castanha, foram atropelados pelos “novos pioneiros”, como os jornais gostavam de apelidar os recém-chegados. A compra de terras seguia num processo desordenado e fraudulento e, com documentos falsos, os compradores expulsavam a ferro e fogo os antigos moradores.
Limpar ou clarear as terras passou a ser a ordem do dia. E já que o avanço sobre a floresta era financiado e aplaudido pelo governo, mandava quem podia, obedecia quem tinha juízo. Advogados, oficiais de justiça, promotores, juízes e policiais se uniam a jagunços e pistoleiros para que a reorganização do território fosse garantida. Na imprensa local, o silêncio reinava.
Voz da floresta
A celeuma socioambiental que se desencadeava no Acre já começava a repercutir no Sul do país. Veículos como Estado de S. Paulo e Jornal do Brasil enviavam seus correspondentes para cobrir a nova era nortista. “É um mosaico de tipos que se encontra a cada passo nas cidades do Acre, na grande luta pela compra de terra. (...) É gente destruindo, indiscriminadamente, a mata”, denunciava, em 1972, a reportagem de Alberto Temer para o diário paulista.
“O Acre passou a ser o novo eldorado, registrando-se uma verdadeira corrida às suas terras. Seringais foram adquiridos e transformados, aos poucos, em imensos campos de pastagens. Gente de tipos e hábitos diferentes fora chegando ao estado, de avião, de carro e embarcações”, relatava Ribamar Fonseca no JB, em 1974.
O Acre pegava fogo. Mas a julgar pelas bancas e TVs de Rio Branco, o estado parecia um mar de rosas. “Índio, terra, meio ambiente eram temas que não entravam absolutamente nos jornais locais”, diz Elson. “O Varadouro foi o primeiro jornal a dar voz ao Chico Mendes. E fomos nós os primeiros a entrevistar estudiosos da Amazônia que andavam preocupados com os acontecimentos”.
A floresta finalmente virou pauta. Com matérias que denunciavam o desmatamento irracional e a violência com que aconteciam as ocupações, o jornal cobriu um gargalo de informações que fazia a própria população local acreditar que tudo corria bem. “Queríamos que as sociedades urbanas percebessem que o progresso anunciado pelo governo militar era desastroso”, explica o jornalista. “Estávamos aqui não para registrar fatos, mas para protagonizar uma luta pela salvação da floresta. Varadouro se tornou um veículo de militância político-ecológica-amazônica”.
A relação do jornal com os povos da floresta era íntima. Nas reuniões sindicais, Chico Mendes lia em voz alta as reportagens, e saía rio abaixo distribuindo exemplares para os ribeirinhos. Seringueiros pediam letras maiores aos editores, pois liam os textos sob a luz fraca de lamparinas. E indígenas volta e meia chegavam às reuniões de pauta dando pitaco.
Para ganhar esse público, a linguagem utilizada nos textos era a mais simples e direta possível, quase oral. O sucesso foi tamanho que a tiragem chegou a alcançar sete mil exemplares em algumas edições. “Isso representa mais do que a soma dos quatro diários que circulam hoje em Rio Branco”, aponta Elson Martins, orgulhoso.
A repercussão do “patinho feio” também chegou a outros estados, como um grito que tirava de debaixo dos panos as arbitrariedades que aconteciam naquela Canaã. A cada nova edição, eram publicadas cartas vindas do Sul, Nordeste e Centro-Oeste, elogiando e incentivando a iniciativa. O exemplo emblemático disso ficou por conta do cartunista Henrique de Sousa Filho, o Henfil. Em exílio voluntário no Rio Grande do Norte, ele se deparou com os três primeiros números do Varadouro e enviou uma carta, encantado: “Só achei uma coisa que muito me emocionou: não tem cheiro de Rio de Janeiro nem de São Paulo. Tem cheiro de Acre. A paginação, a leitura, tudo tem a cara do Acre”.
Repressão local
Mas se o jornal fazia a festa de índios, seringueiros e críticos do regime militar, a elite do estado passou a se incomodar com o conteúdo que ele disseminava. Ao contrário de outros periódicos alternativos, o Varadouro não sofreu ameaças diretas do governo. Mas teve que rebolar para não cair nas mãos dos “novos pioneiros”. “Os fazendeiros odiavam o pessoal do Varadouro e chegaram a fazer uma reunião reservada para decidir sobre minha eliminação”, conta Elson, que chegou a ser emboscado por jagunços, mas conseguiu escapar ileso.
Antes de tocar o alternativo, o jornalista já havia sido correspondente do Estado de S. Paulo, e fazia questão de denunciar a violência que acontecia na região amazônica. Naquela época, seu nome já rodava na boca das elites: “Era comum que o presidente da Associação dos Criadores de Nelore do Brasil procurasse a direção do jornal em São Paulo, pedindo minha cabeça”.
Sem dinheiro ou infraestrutura, a própria impressão do jornal era um desafio. O parque gráfico do Acre era reduzidíssimo à época, e a linha editorial ousada do boletim deixava cabreiros quaisquer investidores voluntários. A verba para os primeiros números veio da Igreja, que depois acabou tirando o time de campo.
Essas eventualidades, porém, não desanimavam a pequena equipe que se desdobrava para botar o Varadouro na rua. Mesmo em condições complicadas para tocar o barco, eles conseguiram a façanha de chegar a 24 edições, entre acertos e tropeços.
Mais acertos, visto que hoje, em cada dez livros escritos sobre as lutas socioambientais que se desenrolaram no Acre do governo militar, dez consultaram o Varadouro. O jornal se tornou documento indispensável sobre a época, pois abriu a boca quando todos se calaram. E não lhe faltaram avisos para que fechasse a matraca. “É um desafio, até certo ponto, incômodo. Sabemos que seremos amados e mal-amados. Mas ainda assim achamos que vale a pena assumi-lo, porque acreditamos que o homem acriano e o da Amazônia em geral merecem muito mais do que simplesmente o ‘berro do boi’”, dizia o editorial da primeira edição. De fato, valeu a luta.
(Por Bernardo Camara, O Eco, 23/07/2009)