O encontro das Comunidades Eclesiais de Base está reunindo nessa semana em Porto Velho, Rondônia, quase três mil pessoas. O tema do encontro é No ventre da terra, o grito que vem da Amazônia. Com os pulmões inflados pelo ar quente que sopra no coração do Brasil, os delegados, assessores e convidados celebram, refletem, debatem e partilham experiências em torno da missão das Igrejas na defesa da natureza. Trata-se de um verdadeiro pentecostes, como vem sendo chamado esse entusiasmado encontro de diversidades.
Na pauta das discussões está o equívoco de uma civilização que contrapõe desenvolvimento e natureza, gerando um desequilíbrio que prioriza o primeiro à custa da degradação da segunda. Num dos pratos dessa falsa balança, estão as empresas e corporações que mercantilizam e esgotam a terra, e também estão os governos federal, estaduais e municipais, com obras gigantescas que privilegiam os grandes e sacrificam os pequenos. Vista como uma zona de sintropia - para usar uma expressão dos especialistas - a Amazônia assiste a depredação da riqueza e da beleza de suas águas, biodiversidade e energia (os três maiores alvos do sistema capitalista que vigora como pensamento único em muitos gabinetes).
Desde Rondônia, com a voz das Comunidades Eclesiais de Base, a Amazônia toda grita pelo seu povo, pela sua terra, pelas suas águas, pela floresta e pelas cidades.
O grito dos povos
A Amazônia grita pela voz rouca de seus povos, tão próximos da suavidade rumorosa pela qual fala toda a natureza. Pluriétnica, pluricultural e plurirreligiosa, a Amazônia grita pela boca dos 12 mil indígenas, povos primitivos, resistentes e ressurgidos que habitam essas terras há pelo menos 12 mil anos. A Amazônia grita pela boca dos 21 mil quilombolas, moradores de quase 1.500 comunidades que lutam pelo direito de viver e cuidar de suas terras. A Amazônia grita pela boca dos migrantes da borracha, que desde o século XIX ocupam como escravos os aviamentos e colocações e retiram a seiva da floresta. Herdeiros de Chico Mendes, o patriarca da Amazônia, eles são hoje 26 mil moradores das 35 reservas extrativistas que se espalham por toda a região.
A Amazônia grita pela boca dos ribeirinhos e pescadores, guardiões da sacralidade das águas, dos lagos santuários, das caixas pesqueiras, dos rios, igarapés e nascentes que fazem desta, a terra das águas. A Amazônia grita pela boca dos posseiros, camponeses, sem terra e assentados que somam quase um milhão e meio de pessoas. A Amazônia grita pela boca dos colonos e migrantes pobres: do nordeste, vítimas da seca; do sul e sudeste, vítimas dos modelos de colonização atraídos para essas terras com a pretensão de diminuir os conflitos sociais de suas regiões de origem. A Amazônia grita pela boca das dezenas de milhares de trabalhadores que vivem em regime de escravidão pelos grotões da região.
A Amazônia grita pela boca dos 15 milhões de moradores urbanos, 13% dos quais analfabetos, 14% sem teto, 46% sem água encanada, mais de 80% sem esgoto, vítimas da pior oferta de atendimento de saúde do Brasil, portadores de doenças tão antigas como a malária, a dengue e a febre amarela - enfermidades que não despertam o interesse da ultra-moderna medicina e das sequiosas indústrias farmacêuticas meramente por se caracterizarem como "doenças de pobre" ou "doenças da pobreza".
O Brasil, que há muito tempo não conhece a Amazônia e que reservou a esse bioma tantas depreciações e preconceitos, tem a chance agora, pela voz desses povos, de ouvir o que diz a Amazônia.
O grito da terra
A Amazônia grita pela voz da mãe-terra, morada sagrada de todos os seres, berço do qual viemos e colo no qual acalentamos nossos sonhos e esperanças. Terra disputada pelo capital, rasgada e violentada pelas mineradoras, garimpos e siderúrgicas, profanada pelo agronegócio monocultor da pecuária (que de 1990 a 2003 cresceu 140% na região), da soja e da cana, militarizada em nome da segurança nacional, ameaçada pela internacionalização, globalizada pelo narcotráfico, pela prostituição, pela fome e pelo abandono. Terra poluída pelos defensivos agrícolas, contaminada pelo mercúrio, corrompida pelo silêncio dos campos nos quais a vida deu lugar ao artefato, o natural foi substituído pelo artificial, o território da vida pelo negócio explorador. E agora, o pior: legalmente grilada, entregue aos interesses dos latifundiários pela medida 458, editada pelo governo Lula.
Pelo grito da terra que é Gaia, a deusa primeira dos gregos e que é Pachamama, a mãezinha dos povos latinoamericanos, todos nós gritamos. Como crianças arrancadas do seio de sua mãe. Como órfãos de um tempo de desequilíbrio e descuido que fere a mais íntima essência daquilo que constitui o ser humano.
O grito das águas
Desde quando fora batizada pelos indígenas de amassunu, que quer dizer "ruído de águas, água que retumba", a Amazônia tem sido conhecida como a terra das águas. Nela se encontra 20% das reservas de água não congelada do mundo. No ventre das terras amazônicas escorre lento e pegajoso o maior rio do mundo, o Marañon-Solimões-Amazonas. São 6.671 quilômetros abastecidos por uma gigantesca rede de mais de 1.100 rios, além de incontáveis igarapés, corredeiras e nascentes que garantem a vida de tudo o que está à sua volta - como no texto bíblico do profeta Ezequiel (47, 1-12).
Leite da terra sugado lentamente pelo existir das raízes que penetram o corpo da terra, a água escorre pelo ventre da madeira que se ergue portentosa e se lança na atmosfera em "rios voadores" que abastecem todo o continente americano e interferem no clima de todo o planeta. A quantidade de água coletada e transportada por esse maravilhoso sistema é equivalente à vazão do rio Amazonas, ou seja, cerca de 200 mil metros cúbicos por segundo.
Mas a Amazônia chora lágrimas de água barrenta, fétida e amarga. Inúmeras hidrelétricas foram ou estão sendo construídas, colocando em risco muitos eco-socio-sistemas. As águas gritam contra a poluição e a contaminação causadas pelo uso extensivo de agrotóxicos e pelo derrame de esgotos, pela morte dos mananciais e nascentes sob as máquinas do hidro-agronegócio, pelo desperdício e pela privatização.
A força das pororocas e seu ronco inebriante que rompe todos os obstáculos e celebra a força da natureza é a grande inspiração do povo das CEBs na defesa das águas amazônicas.
O grito das florestas
Sobre o corpo portentoso das terras amazônicas, erguem-se as florestas e seus inúmeros seres: 55 mil plantas (22% das espécies do mundo), 1 mil tipos de aves, 300 tipos de mamíferos, 550 répteis, 163 anfíbios, 3 mil peixes e milhões de insetos e microorganismos. A floresta esconde seus segredos e preserva suas grandiosidades: 30% da fauna e flora do mundo estão na Amazônia. A floresta guarda o seu povo, seus bichos e suas lendas. A floresta canta sua ladainha de nomes, frutos e plantas de variadas espécies que vem sendo destruídas e extintas. Num tempo no qual três espécies biológicas são extintas por hora no mundo (72 por dia!) e no qual, paradoxalmente, se criam em laboratório milhões de espécies alteradas geneticamente, a floresta da Amazônia grita por socorro.
O desmatamento tem atingido índices alarmantes: em 2004, foram extraídas 6,2 milhões de árvores da floresta, entre 2006 e 2007 foram desmatados 11.532 quilômetros quadrados fazendo com que a floresta hoje já tenha perdido pelo menos 20% do seu tamanho original, ou seja, 700 mil quilômetros quadrados de floresta foram destruídos.
A floresta amazônica grita no ventre abrasador das carvoarias, nos dentes ásperos das madeireiras, nos saques diários realizados por laboratórios farmacêuticos e na pilhagem da biopirataria. A floresta grita nas raízes ressecadas pelas queimadas que conduzem à desertificação. A floresta grita isolada entre as cercas das pastagens, das culturas exóticas de eucaliptos e pinus, dos intermináveis horizontes do deserto verde que se alastra e engole a vida da floresta.
O grito da cidade
A Amazônia conta com inúmeros conjuntos populacionais de grande ponte, entre os quais se destaca Manaus, que conta hoje com cerca de 2 milhões de habitantes. Além disso, somam-se inúmeros pequenos povoamentos ainda ruralizados e empobrecidos, nos quais 46% das casas não contam com distribuição de água e cerca de 75% das famílias com crianças até 14 anos ganham até 1 salário mínimo. O crescimento desordenado das periferias, o aumento do desemprego e da violência, a falta de saneamento, de atendimento de saúde e educação, o aumento da drogadição, a falta de políticas de lixo, etc, formam a triste realidade dos moradores urbanos da Amazônia.
Lamento e resistência
O grito de lamento vem se transformando num grito de resistência. O 12º Encontro Intereclesial das CEBs tem revelado a força do povo amazônico na construção de alternativas e de lutas contra o modelo de desenvolvimento que tem fechado os ouvidos para esses clamores. No coração da Amazônia surgem reservas extrativistas, projetos de assentamento agroextrativistas, projetos sustentáveis, comunidades quilombolas, luta dos posseiros e atingidos por barragens, experiências de preservação e recuperação de lagos e rios, redes agroecológicas, artesanato, apicultura e inúmeras alternativas de economia solidária. Surgem fóruns e conselhos, experiências de formação política, de participação das mulheres e uma imensa rede de organização popular e eclesial.
Aqui em Rondônia, nesse Encontro, estão muitos homens e mulheres que fazem essa realidade e, pouco a pouco, transformam o abandono em esperança. É por isso que frase de Dom Moacir Grecchi, arcebispo de Porto Velho, ecoou com tanto êxito: "pessoas simples, fazendo coisas pequenas, em lugares pouco importantes, provocam mudanças extraordinárias". Esse é o sentimento e a certeza que acalenta os corações das CEBs, cuja nomenclatura terá de acrescentar agora, por sugestão de Leonardo Boff, a ecologia: Comunidades Ecológicas de Base. Pelo grito das CEBs a Igreja se faz ecológica!
(CPT / MST, 24/07/2009)