A Iniciativa de Medicamentos para Doenças Negligenciadas (DNDi, na sigla em inglês) é uma organização fundada em 2003 e voltada para a produção de remédios para quatro doenças prioritárias e muitas vezes ignoradas: malária, doença do sono, leishmaniose e Chagas. A iniciativa, com sede na Suíça, é resultado da parceria de várias instituições de pesquisa e saúde do mundo, como os Médicos Sem Fronteiras, o Instituto Pasteur na França, o Conselho Médico da Índia, o Ministério da Saúde da Malásia e a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), no Brasil.
Para o economista belga Eric Stobbaerts, membro do DNDi, de todas as quatro a doença de Chagas é a mais negligenciada. “A doença recebeu, em 2007, apenas 0,25% do dinheiro destinado às quatro”, disse em entrevista à Agência FAPESP. Stobbaerts foi diretor da Médicos Sem Fronteiras no Brasil entre 2007 e 2008, após ter ocupado a mesma posição na Espanha de 1998 a 2004. Fez trabalhos humanitários em conflitos militares no Líbano (1988), Afeganistão (1990 e 1991), Iraque (1991) e Bósnia (1993 a 1995).
O economista participou, na semana passada, do Simpósio Internacional do Centenário da Doença de Chagas, realizado pela Fiocruz no Rio de Janeiro. Na entrevista a seguir, ele fala sobre a epidemiologia da doença de Chagas, dos fatores que a fazem ocupar uma posição silenciosa no mundo e como, paradoxalmente, a chamada globalização da doença pode chamar mais atenção para ela.
Agência Fapesp – Que lugar a doença de Chagas ocupa no rol das chamadas doenças negligenciadas?
Eric Stobbaerts – É a mais negligenciada de todas. Um dos indicadores é determinado pelo dinheiro destinado à pesquisa para as doenças negligenciadas vindo das iniciativas pública e privada, que foi de US$ 2,5 bilhões em 2007. Desse montante, apenas 0,25% foi para a doença de Chagas, o que representa cerca de US$ 10 milhões, metade dos quais é aplicada em pesquisa básica. Outro indicador dessa negligência é que a probabilidade de termos um novo medicamento para a doença é baixa, uma vez que nos últimos 30 anos (de 1975 a 2005) foram desenvolvidos 1.556 medicamentos, dos quais 21 eram para as outras doenças desta lista e nenhum para Chagas.
A que se deve essa situação?
Stobbaerts – Ao perfil do doente. Chagas é chamada de “doença silenciosa” porque atinge pacientes de populações das áreas rurais, que não têm voz e têm muito pouca consciência de seu direito ao tratamento. Há aí uma negligência social e política por parte da indústria farmacêutica, dos governos e da mídia. A doença é silenciosa porque atinge uma população silenciosa.
A epidemiologia da doença justifica essa situação?
Stobbaerts – Esse é um outro sinal do descaso, uma vez que todos os números da doença são baseados em estimativas. Segundo fontes oficiais, a ocorrência varia de 8 milhões a 16 milhões de pessoas no mundo, essencialmente nos 21 países endêmicos latino-americanos, onde são estimadas 14 mil mortes por ano. Sabemos que muitas dessas mortes são notificadas como cardiopatias, não como resultado de Chagas. A forma mais comum é a morte súbita, ou seja, as pessoas nem sabem que têm a doença. E ainda há o risco de 100 milhões de pessoas contraírem a doença. Epidemiologicamente falando, há também um fato importante a ser considerado: atualmente, devido à crescente mobilidade das pessoas, encontramos casos nos Estados Unidos, Canadá, Austrália, Japão e Europa. Está havendo uma globalização da doença. O paradigma de que Chagas é um mal latino-americano está caindo.
Paradoxalmente, essa globalização da doença não pode atrair mais atenção para ela, fazendo com que seja menos negligenciada?
Stobbaerts – Sem dúvida, essa é uma oportunidade para a doença abandonar sua posição de doença silenciosa. Já está havendo uma preparação dos corpos médicos dos países não-endêmicos, que não estão preparados para ela. Há uma tomada de consciência mundial e tem se questionado a ausência de soluções no programa de prevenção da doença. Uma coisa é controlar o vetor, mas o que fazemos com as pessoas infectadas? Há apenas dois medicamentos desenvolvidos nos últimos anos. São tóxicos e não há um consenso médico sobre usá-los nas duas fases da doença – a aguda e a crônica. Não são eficazes, como os medicamentos antirretrovirais para a Aids, por exemplo. A diferença entre Chagas e problemas como a Aids é que as pessoas soropositivas se mobilizaram rapidamente. Para Chagas, não há sequer uma associação de doentes. O círculo do silêncio é perpetuado, mesmo depois de cem anos da descoberta da doença.
(Por Washington Castilhos, Agência Fapesp, 22/07/2009)