O Brasil está em terceiro lugar no ranking das 100 empresas de países "emergentes", com potencial para desafiar as transnacionais estadunidenses e europeias. São 14 as empresas com origem no Brasil, somente atrás de companhias da China e da Índia [1]. Vemos que as empresas com origem no Brasil não somente crescem, mas se internacionalizam e ganham mais importância no cenário internacional e na política exterior brasileira, convertendo-se também em agentes de conflitos entre Estados. Entre os mais emblemáticos estão os casos de conflito entre o Brasil e a Bolívia, devido à nacionalização do petróleo naquele país em 2006; e entre o Brasil e o Equador, no ano passado, devido aos problemas causados pela Construtora Odebrecht, na construção da hidrelétrica San Francisco.
Em geral, as empresas transnacionais (ETN) são um dos principais motores do desenvolvimento capitalista. Por trás de uma grande empresa, existe sempre um Estado forte, que a financia e estrutura o campo jurídico e político para que ela atue. E por trás de um Estado hegemônico, existe sempre ETNs que atuam dentro e fora do país, levando sua marca e criando sua imagem junto a do país potência. Esta mistura entre capital e Estado é característica da hegemonia capitalista na qual os interesses das classes dominantes são apresentados como universais.
Transnacionais e "subimperialismo"
A hegemonia estadunidense teve como um de seus principais pilares os Investimentos Estrangeiros Diretos (IED), a exportação de capital através da expansão e da instalação de suas empresas em todo o mundo. Através desses investimentos, construiu-se uma interrelação entre política e economia, expandindo e aprofundando as áreas de influência e controle dos Estados Unidos. O Brasil busca desenvolver-se partindo desse modelo. Marini analisou nos 70 o processo de internacionalização da economia brasileira através do que chamou "subimperialismo" [2], do qual o Brasil e também a Espanha seriam casos típicos.
Esta é a forma assumida por uma economia dependente ao chegar à etapa dos monopólios e do capital financeiro, com uma composição orgânica média dos aparelhos produtivos em escala mundial e uma política expansionista. O "subimperialismo" brasileiro é o resultado de um fenômeno econômico e de um projeto político que têm seu início com a ditadura militar. Desde o ponto de vista econômico, é resultado de uma crescente captação de dólares no exterior, bem como de uma entrada de IED. Desde o ponto de vista político, o governo militar criou uma estrutura jurídica e institucional para esta captação de recursos; interveio, assegurando a demanda da produção e expandindo investimentos na América Latina e na África.
Marini aponta a um processo dialético uma vez que a internacionalização da economia demanda também o reforço do próprio Estado nacional. O Estado necessitou organizar seu mercado interno, criando condições políticas para o investimento e converteu-se no principal instrumento de intermediação entre o capital nacional e o estrangeiro. Ao mesmo tempo, sua política "subimperialista" exige autonomia relativa dos distintos grupos capitalistas, para que possa organizar e arbitrar a vida econômica com racionalidade. Isso lhe permite fazer convergir interesses econômicos e políticos, o que seria necessário para converter-se em potência.
Políticas públicas para a internacionalização empresarial
A década dos 90 sedimentou a internacionalização da economia brasileira e pavimentou o caminho para a expansão das empresas para o exterior, principalmente através da liberalização das importações, do fluxo de capitais e da privatização. Hoje, a expansão dos "negócios" brasileiros nos países vizinhos é inegável: 20% da IED na Bolívia derivam da Petrobras; 80% da soja produzida no Paraguai pertence a fazendeiros brasileiros; e na Argentina 24% das aquisições de empresas no país entre 2003-2007 foram de capital brasileiro [3].
Em 2006, as 20 maiores ETN brasileiras investiram 56 bilhões de dólares no exterior. A compra da mineradora canadense Inco pela Companhia Vale do Rio Doce nesse mesmo ano fez com que o Brasil passasse de receptor de investimentos a ser investidor internacional. Porém, também as siderúrgicas (Gerdau, CSN), as manufatureiras (Embraer) e as construtoras (Odebrecht, Camargo Correa) estão entre as principais ETN com atividades em diversas partes do mundo, de forma que 77 mil trabalhadores/as estão empregados pelas "transbrasileiras" no exterior [4].
Não deveria surpreender a declaração de empresas à recente investigação da CEPAL de que são necessárias políticas públicas para que se internacionalizem, como maior participação do Brasil em acordos comerciais e bilaterais com os Estados Unidos, com a Europa e com outros países do Sul, e uma política afirmativa de crédito.[5]. Assim, temos dois pilares importantes da conexão entre Estado e empresas: a política exterior e a de crédito. A partir de 2003, com a nova linha de crédito especial do Banco Nacional de Desenvolvimento (BNDES), as empresas encontraram financiamento governamental específico para sua expansão. O objetivo do banco foi estimular a inserção externa das empresas que promovem exportações brasileiras.
Assim, o BNDES modificou seu estatuto e passou a apoiar empresas com capital brasileiro na implantação de investimentos no exterior; porém, com ênfase comercial, especialmente vinculado a projetos de integração regional [6]. A falta de transparência e de acesso público aos critérios e termos dos empréstimos são fatores de preocupação das organizações sociais. Percebemos que não há menção explícita a critérios ou fatores sociais, ambientais e trabalhistas para os investimentos brasileiros no exterior. O "desenvolvimento", de acordo com os critérios do BNDES, define-se como o aumento da competitividade das empresas e o aumento de divisas por exportação.
A atuação das transnacionais brasileiras está estreitamente vinculada ao novo papel que o Brasil buscou ter no sistema internacional. A partir do governo Lula, foi dada maior ênfase à integração Sul-Sul e o país vem -alinhado com a China, a Índia e com a Rússia-, buscando estabelecer uma identidade própria no sistema internacional. No entanto, há contradições abertas entre os discursos e a apresentação destas iniciativas e seus efeitos reais e principais beneficiários. As empresas foram as grandes beneficiadas por projetos de integração regional baseados na infraestrutura, especialmente no marco da IIRSA. Além disso, em sua participação em instâncias internacionais, o Brasil mostra uma postura ambígua: ao mesmo tempo em que se diz "autônomo" e independente, busca deixar intactas as verdadeiras causas das assimetrias internacionais.
Em vez de gerar uma política exterior que possa transformar as hierarquias e os mecanismos mundiais que mantêm um sistema desigual, busca precisamente o contrário: ser parte do jogo internacional, para poder converter-se em um mais dos que "ditam as regras", perpetuando e aprofundando as próprias instituições e mecanismos de poder. Isso é demonstrado nas insistentes tentativas do Brasil de seguir a Rodada de Doha, na Organização Mundial do Comércio (OMC), e o recente apoio à reestruturação do Fundo Monetário Internacional (FMI), passando de antigo devedor a credor oficial, com um empréstimo de 4.500 milhões de dólares [7].
Resistências e frentes de luta
Temos, portanto, uma situação complexa para as populações atingidas pelas ETN brasileiras, dentro e fora do Brasil. Fora, as empresas atuam como qualquer outra transnacional, causando diversos problemas ambientais, sociais, trabalhistas e gerando conflitos políticos entre governos e empresas. Violações e impactos que se dão também dentro do país. No Brasil, um país com problemas gravíssimos de pobreza, desigualdade, injustiça; com uma história de inserção subordinada e periférica no sistema internacional, a luta contra as transnacionais brasileiras se tornam muito mais complexa, diferenciando-se em boa medida das lutas contra empresas europeias e estadunidenses. As empresas são representadas por governos e pelos meios de opinião pública como motores de desenvolvimento nacional, símbolo de um Brasil "moderno" e novo, capazes de competir no mercado internacional entre "as grandes".
Para os movimentos sociais brasileiros, esta situação torna-se mais complexa quando o governo, ao mesmo tempo em que defende veementemente as empresas, busca dialogar e não cair no enfrentamento direto com os governos vizinhos. Esta "prudência" -que nesses casos recebe apoio de setores da esquerda contra outros setores da elite nacional, que apresentam um posicionamento hostil aos governos progressistas da região-, deve ser entendida dentro da tentativa de construção de uma hegemonia regional. Esta requer certas concessões aos países menores para que o Brasil possa exercer seu papel com o consentimento destes, que veem em sua liderança a realização de seus próprios interesses (contra a liderança dos EUA). Assim, são feitas acomodações e concessões aos interesses dos países vizinhos; porém, sempre de modo que não sejam alterados os interesses dos setores econômicos fortes do Brasil.
Portanto, é necessário que entendamos esta dinâmica da política externa, sua representação na opinião pública e seus efeitos no imaginário popular. O "subimperialismo" brasileiro nos coloca em uma nova situação, com duas frentes de luta concomitantes. Por um lado, temos o enfrentamento direto com as empresas e com os agentes do Estado que as apóiam, contra projetos destruidores dos meios de vida de milhares de pessoas, do meio ambiente; absorvedoras de créditos públicos e, desta forma, da renda da população.
Por outro lado, temos a luta dentro da própria sociedade brasileira pela construção de um novo sentido comum que supere a ideia de que necessitamos "desenvolver-nos" dentro do mesmo modelo europeu e estadunidense, crescendo sobre nossos vizinhos a partir de um projeto de "Brasil potência". Aqui, os interesses privados das empresas se misturam com o "interesse nacional", e a defesa das empresas em conflito com governos de outros países apresenta-se em nome de toda a população brasileira.
Nessa linha, a Responsabilidade Social Corporativa, os meios de comunicação de massas e as universidades servem, no sentido gramsciano, como "trincheiras de defesa" e "fortalezas" do sistema de dominação estabelecido. Ajudam a formar um consenso coerente com a ideologia dos grupos dominantes, que se consolida no imaginário popular das massas [8]. É importante destacar que este consenso mistura a identidade nacional com o papel das empresas, que aparecem como representantes do Brasil no exterior.
Como desmontar este mito em torno das empresas? Como desvincular a identidade dos povos da identidade corporativa de uma empresa como, por exemplo, a Petrobras que representa um passado de luta pela soberania sobre nossos recursos e que, hoje, é denunciada por explorar os bens e recursos naturais dos povos da região? Temos, assim, um complexo mecanismo que mistura o interesse público e privado, um "quebra-cabeças" entre identidade nacional, política externa e interesses privados.
Conclusões
A atual luta dos movimentos sociais contra atividades e megaprojetos das ETN brasileiras enfrenta diferentes frentes. Por um lado, esses movimentos estão articulados dentro e fora do Brasil para impedir a passagem das atividades que estão destruindo seus meios de trabalho e de vida. Por outro lado, encaram uma batalha ideológica dentro da sociedade brasileira, uma vez que o Brasil é entendido como país "em desenvolvimento", que necessita crescer e estabelecer-se no sistema internacional, tendo as empresas como grandes motores dessa lógica. Essa ideia, embutida no imaginário coletivo, é sustentada pelas diversas formas de penetração das empresas nas esferas e instituições da sociedade civil e das comunidades onde atuam.
O atual governo busca legitimar o país como ator autonômo e competitivo fora e dentro. Fora, busca estabelecer uma situação de hegemonia regional e um lugar nas instituições da "sociedade internacional" no mesmo umbral que os países dominantes. Dentro, necessita legitimar-se frente às forças conservadoras, que preferiam um retorno ao neoliberalismo sem máscaras. Dentro de uma lógica que aceita as regras do jogo do sistema capitalista e busca jogar desde uma posição próxima aos que ditam as regras, o Brasil está cumprindo seu papel, buscando competir em um "esquema de todos contra todos".
No entanto, vale à pena questionar quem ganha e quem perde no marco desta política. Na perspectiva dos povos, o povo brasileiro está ganhando em cima da exploração de outros povos? Finalmente, para quê e para quem? E esta é a pergunta que queremos propor aqui. Entendemos que o esforço de crescimento do Brasil é um esforço da população trabalhadora. É do trabalho da população que nasce a geração do valor que se torna recurso para o Estado. Entendemos que esses recursos, ao ser aplicados às empresas, nas Instituições Financeiras Internacionais (IFIs), como o FMI, e nos megaprojetos de infraestrutura, estão sendo usados de forma perversa, contra os interesses de justiça social, trabalhista e ambiental da classe trabalhadora.
Notas
[1] "Brasil tem 14 grupos na lista de multis emergentes", Estado de São Paulo, 29/01/2009.
[2] Marini, Ruy Mauro: "La acumulación capitalista mundial y el subimperialismo", Cuadernos Políticos, n.12, Ediciones Era, México, 1977, p. 17. Disponible en: www.marini-escritos.unam.mx
[3] Caccia Bava, Silvio: "Gigante pela própria natureza", Le Monde Diplomatique Brasil, febrero 2009.
[4] Datos de una investigación realizada periódicamente por una institución conectada a los medios empresariales, Fundação Dom Cabral: www.fdc.org.br.
[5] Tavares, Márcia: "Investimento brasileiro no exterior: panorama e considerações sobre políticas públicas", Serie Desarrollo Productivo 172, CEPAL, 2006.
[6] Alem, Ana C./ Cavalcanti, C.: "O BNDES e o apoio à internacionalização das empresas brasileiras", Revista do BNDES, v. 12, n. 24, dezembro 2005.
[7] "Brasil aceita virar credor do FMI e emprestará ate’ US$ 4,5 bilhões", Folha online, 9/4/2009.
[8] Gramsci (1971): Selections from the Prison’s Notebooks, International Publishers, New York, 2008.
(Por Ana García Muller*, Revista Pueblos / OMAL / Adital, 21/07/2009)
* Doutoranda em Relações Internacionais/ PUC-Rio e membro do Instituto Rosa Luxemburgo Stiftung