A Folha de S. Paulo publicou neste domingo (12/07), no caderno Dinheiro, a reportagem "Amianto dribla proibições e prospera em mina goiana". O foco é Minaçu, onde fica a mina de amianto de Cana-Brava, a única ainda em exploração no Brasil. Pertence à mineradora SAMA, do Grupo Eternit, a maior empresa de fibrocimento do país. A reportagem é de Anna Carolina Cardoso e Estelita Hass Carazzai, enviadas especiais à cidade do Norte de Goiás.
Acontece que:
1) Falar de Minaçu sem aprofundar a questão da saúde dos trabalhadores e da população em geral é impossível. E a reportagem praticamente ignorou-a. Tratou como se fosse uma disputa comercial entre os fabricantes de produtos à base de amianto e os de fibra sintética.
Só que todo tipo de amianto – inclusive a crisotila, da mina goiana – é cancerígeno aos seres humanos. É a posição oficial da Organização Mundial da Saúde (OMS), da IARC (Agência Internacional de Pesquisa sobre o Câncer), da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da Organização Mundial do Comércio (OMC) e do Instituto Nacional de Saúde e Pesquisa Médica, o respeitado INSERM, da França. Também da Fundação Oswaldo Cruz, a Fiocruz, no Rio de Janeiro. “O amianto não é apenas questão de saúde ocupacional”, sustenta Hermano Albuquerque de Castro, coordenador do Centro de Estudos da Saúde do Trabalhador e Ecologia Humana da Fiocruz. “É problema de saúde pública, sim.”
2) A reportagem não deu espaço às vozes contrárias ao amianto. De passagem, cita de forma covarde e desrespeitosa, a professora Lúcia de Souza e Silva Marques, filha do seu Manoel, falecido em 6 de agosto de 2008. Os médicos da Junta Médica da Sama/Eternit disseram que o seu Manoel estava bem, mas ele tinha câncer no pulmão.
Em entrevista ao Viomundo, publicada em 14 de julho de 2008, Lúcia, que é uma das fundadoras da Associação Goiana dos Expostos ao Amianto (Agea), disse: “Meu pai grita de dor, está à base de morfina; tem metástases em ossos, cabeça, fígado; os dois rins estão tomados pelo câncer, somente um funciona”, afirmou à época. No dia 6 de agosto, seu Manoel morreu. “Infelizmente mais uma vez a fibra assassina termina o seu maldito 'serviço'.”
Na matéria da Folha, é dito que Lúcia é chamada de “louca”, por ser a única na cidade a dizer que há pessoas doentes. Baixeza total. Como citar alguém dessa forma, sem dar-lhe o direito de rebater? É “jornalismo de esgoto”.
Não é preciso bola de cristal, para saber que as repórteres foram ciceroneadas em Minaçu por pessoas ligadas ao lobby do amianto. Se quisessem realmente buscar a verdade dos fatos, elas chegariam a outras fontes que certamente as levariam às vítimas ou aos seus familiares. Só que dá trabalho. É preciso gastar sola de sapato e saliva. Não vai ser andando de carro para cima e para baixo, ou conduzidas pelos motoristas da empresa, como se estivessem fazendo matéria de turismo, que a verdade virá à tona. Muitos doentes e/ou seus familiares até olhariam com desconfiança e não se abririam, dependendo de quem acompanhasse as repórteres nas visitas e entrevistas.
Minaçu é um lugarejo, de interior, onde todo mundo se conhece. Além do receio de perder o emprego citado na matéria da Folha, impera outro medo: o dos donos do poder político-econômico local - os caciques da cidade. Existe um sistema tão eficaz de “vigilância” – ou deduragem, se preferirem – que os habitantes evitam contato com as vítimas e/ou familiares, como se eles estivessem com a "peste". A
3) A reportagem passa a impressão de ter sido encomendada pelo lobby do amianto não só pelos entrevistados que aparecem, mas também pela forma como o material foi editado. Tudo escolhido a dedo.
O tempo todo só “ falam” os defensores do amianto, entre eles, o prefeito de Minaçu, Cícero Romão (PSDB): “Tudo o que se fala contra o amianto é mentira. Até hoje não se prova que houve sequer uma pessoa doente aqui.” Cícero Romão teve o mandato de prefeito cassado por improbidade administrativa, acusado de compra de voto. E só retornou ao cargo via uma decisão em caráter liminar.
4) As repórteres tiveram a viagem custeada pelas três empresas que patrocinam o programa de treinamento em jornalismo diário da Folha de S. Paulo: Philip Morris Brasil, Odebrecht e Oi. Ambas participaram da 47ª turma do programa de treinamento em jornalismo diário da Folha, informado na própria matéria.
E, aí, perguntamos: que capacidade crítica terá esses jovens profissionais na hora em que fizerem reportagens envolvendo os financiadores dos seus treinamentos? E, se um dos patrocinadores atua justamente na área do amianto, enquanto outro também fabrica produto cancerígeno, como é que fica? E, se por estranha coincidência, tudo nesta reportagem foi às expensas dessas mesmas empresas?
A Philip Morris Brasil é fabricante de cigarro, que, todo mundo sabe, é cancerígeno, mata. A Odebrecht é dona da Braskem, maior fabricante de cloro no Brasil. O cloro é usado na fabricação do PVC e plásticos em geral. E o amianto -- atenção! -- entra na separação do cloro e da soda cáustica. É mais do que conhecida a eficiência dos lobbies do amianto e do tabaco. Imaginem juntos! A excelente reportagem O embaixador do amianto, publicada na revista Exame e reproduzida pelo Viomundo, compara justamente esses dois lobbies e suas estratégias junto à imprensa, através de seus simpáticos e bem falantes assessores infiltrados em tudo que é canto.
Conflito de interesse flagrante. Conduta antiética. E que não venha a redação jogar a responsabilidade nas costas de duas “focas”. Claro, elas tiveram participação. Lamentavelmente, começaram muito mal a carreira no jornalismo.
Mas a responsabilidade, de fato, é dos estão acima das duas repórteres. Essa matéria passou pelo crivo dos editores e da própria direção de redação. Afinal, matéria de página inteira de jornalão não é notinha de rodapé, que se decide ali na hora. Publicar matéria de página inteira é decisão bem pensada. Será que ninguém percebeu que havia algo errado na apuração e/ou na edição? Será que ninguém se indignou de ver alguém ser chamada de “louca” e não ser ouvida na reportagem?
Será que ninguém estranhou a falta de outras vozes contrárias? Só para citar duas: a engenheira Fernanda Giannasi, coordenadora da Rede Virtual - Cidadã pelo Banimento do Amianto na América Latina, e João Eliezer de Souza, presidente da Associação Brasileira dos Expostos ao Amianto (Abrea). Detalhe: os dois gastaram horas com as duas repórteres. NADA do que disseram foi publicado.
Será essa matéria o retrato do curso de treinamento de Jornalismo da Folha? Foi exatamente a combinação esdrúxula de reportagem deplorável custeada por empresa que tem interesse direto no amianto que chamou a atenção desta repórter. Por isso, entrevistamos a engenheira Fernanda Giannasi.
Em 2008, a TV Bandeirantes pôs na gaveta por mais de dois meses uma série especial sobre o amianto no Brasil e suas conseqüências à saúde humana e ao meio ambiente, que seria exibida no Jornal da Band. Por coincidência, no dia em que a primeira reportagem iria ao ar, começou na Band FM uma campanha publicitária em defesa do amianto, patrocinada pelo Instituto Brasileiro do Crisotila (IBC), entidade que promove o lobby da indústria. A série foi desengavetada quatro dias após a reportagem publicada no Viomundo sobre o assunto. A campanha publicitária na Band FM foi suspensa pelo Conar [Conselho Nacional de Autoregulamentação Publicitária]. O previsível, portanto, seria o Grupo Sama/Eternit e o IBC agirem, concorda?
Fernanda Giannasi - A Sama, a Eternit e seu instituto propagandístico, o IBC, já estão muito queimados com suas ações primárias e previsíveis. É sempre “la même chose” com os mesmos personagens atuando. Está se tornando uma comédia bufa. Só fazem trapalhadas. Um exemplo é o vídeo colocado semana passada no YouTube, com material a favor do amianto. Na chamada, associaram o meu nome a esta produção de quinta categoria. O vídeo foi retirado tão logo registramos queixa de danos à imagem e propaganda enganosa.
A senhora acha que a Odebrecht entrou no circuito? Surpreendeu-a?
Fernanda Giannasi – O que vimos na Folha de S. Paulo deste domingo foi um verdadeiro golpe de mestre. É de tirar o chapéu a sutileza como a Braskem, maior produtora de cloro do País, antes discreta no seu modo de agir, foi introduzida nesta feroz luta para conter os avanços da luta pelo banimento do amianto no Brasil. Surpreendeu-nos pela ousadia de fazerem isto via um órgão de imprensa como a Folha de São Paulo. Mas já vínhamos percebendo uma movimentação muito grande do setor de cloro-soda nos bastidores do poder. Evidentemente que esses novos lobbystas são mais requintados e sub-reptícios do que essa turma do IBC, CNTA [Comissão Nacional dos Trabalhadores do Amianto], CNTI [Comissão Nacional dos Trabalhadores da Indústria], Bancada da Crisotila no Congresso Nacional, que se caracteriza pelo excesso de truculência, falta de inteligência e, principalmente, elegância.
Por favor, explique aos nossos leitores o que cloro tem a ver com o amianto.
Fernanda Giannasi - A Braskem é a maior produtora de cloro do país. Sua principal unidade fica em Maceió. É a antiga estatal Salgema, privatizada na era FHC e uma das principais associadas da Abicor -- Associação Brasileira da Indústria do Cloro. Pois bem, o cloro é matéria-prima essencial da indústria do plástico, leia-se PVC; o amianto é insumo fundamental para a separação eletrolítica do cloro, soda, HCL e outros subprodutos. A Braskem é uma empresa do Grupo Odebrecht, que,coincidentemente, é uma das financiadoras do estágio de jornalistas jovens na Folha de S. Paulo, entre os quais as duas que fizeram a matéria sobre Minaçu.
Por que a Odebrecht entraria no circuito? Fora da área especializada, suponho que pouca gente conheça a ligação do grupo Odebrecht com a área de amianto.
Fernanda Giannasi – Se você visitar o site da Abicor, verá que a Braskem é uma das principais associadas produtoras. A Braskem deve ter se cansado da incompetência de sua parceira, Eternit/SAMA, na defesa do amianto, pois seu lobby sindical é composto de conhecidos e velhos pelegos. Seu advogado, por exemplo, Maurício Correa, ex-presidente do STF, se atrasou para o célebre julgamento do dia 4 de junho de 2008, que derrubou a liminar que impedia a lei do Estado de São Paulo de vigorar, e não defendeu adequadamente os interesses de seu cliente (oficialmente CNTI). Maurício Correa que, ainda ministro do STF, foi o relator da primeira lei do Estado de São Paulo de banimento do amianto e declarou-a inconstitucional.
Desde quando o ex-presidente do STF, Maurício Correa, advoga para os interesses da indústria do amianto?i
Fernanda Giannasi – É esta a pergunta que não quer calar. Desde quando? Eis a questão! Sugeriríamos que o Ministério Público investigasse quem realmente paga os honorários do ex-poderoso do STF, fazendo uma auditoria nas contas da CNTI, que é quem se declara oficialmente a empregadora dos seus serviços advocatícios, já que a entidade sindical está usando dinheiro de seus associados -- OS TRABALHADORES! -- na defesa dos interesses da indústria.
Que acordo é este que o setor do cloro-soda está tentando fazer valer? Dá para esmiuçá-lo?
Fernanda Giannasi - O setor de cloro-soda é bastante poderoso financeiramente. As três empresas que ainda produzem com tecnologia à base de amianto representam mais de 70% da produção nacional. Apesar de ser a maior, a Braskem/ Odebrecht foi a única que não obteve sucesso em arrancar junto de seu sindicato de trabalhadores um acordo sindical para uso do amianto, já conseguido com a CUT da Bahia e a Força Sindical da Baixada Santista. Parece que a Braskem não vai mesmo conseguir lograr êxito, conforme nota postada ontem no Viomundo .
Quais são as outras duas empresas do setor?
Fernanda Giannasi – A Carbocloro e a Dow Brasil. As duas fecharam, respectivamente, com o Sindicato dos Trabalhadores Químicos e Petroquímicos da Baixada Santista (Cubatão) e com o Sindicato dos Trabalhadores Químicos da Bahia, acordo para uso do amianto no processo de filtragem do cloro e soda, com base no que determina a lei 9.055/95 do uso controlado do amianto. Estes dois acordos já foram denunciados por mim ao Ministério Público do Trabalho pela sua lesividade aos interesses dos trabalhadores, porque excluem todos os terceirizados, e por afrontarem a dignidade da pessoa humana representando uma ameaça iminente à vida e integridade física deles. São uma verdadeira aberração jurídica, pois vão contra e flexibilizam o que há na legislação brasileira de proteção ao trabalho relativo ao amianto.
Esses acordos têm outras implicações ?
Fernanda Giannasi - Suponho que a Abiclor pretenda com eles se cacifar junto ao STF não só para representar o interesse de suas associadas -- as indústrias --, mas também os empregados, por meio destes acordos sindicais, que lhes darão a devida representatividade e legitimidade para falar também em nome deles.
Então há, no mínimo, uma esquisita coincidência entre a matéria na Folha de S. Paulo deste domingo e o que se passa na Braskem/Odebrecht neste momento?
Fernanda Giannasi – Com certeza, a matéria não foi publicada por acaso. Vem no momento em que a Braskem ameaça, pressiona e intimida os dirigentes sindicais de Alagoas. Inclusive, existe o risco de ela querer fazer um acordo direto com seus empregados, passando por cima da representação do sindicato de classe, usando como pretexto o fechamento da empresa e a demissão de seus empregados, caso o acordo não seja assinado. Agindo dessa maneira, ela arranca até assinatura de defunto! Através do deputado federal por Alagoas, Givaldo Carimbão, a Braskem está tentando influenciar na Câmara dos Deputados o GT AMIANTO, da Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (CMADS), cujo relatório está ali sendo elaborado; é um denso dossiê sobre a situação do amianto no Brasil. Estão também se movimentando junto ao STF para impedir a aprovação da ADI 4066, que pretende declarar inconstitucional a lei do uso controlado do amianto.
A senhora é auditora fiscal do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) e já sofreu pressões fortíssimas e represálias devido ao poderoso lobby do amianto. Recentemente, por exemplo, a SAMA tentou impugnar a sua participação na fiscalização do amianto no Estado de São Paulo, o prefeito de Minaçu denunciou-a à comissão de ética da instituição em que a senhora trabalha, bem como o Instituto Brasileiro do Crisotila apresentou queixa por abuso de poder. A Braskem/Odebrecht já fez alguma coisa do gênero?
Fernanda Giannasi – Em 2003, durante a minha inspeção à planta de Maceió da Braskem (antiga Salgema) recebi o memorando [está abaixo] me impedindo de fiscalizar fora do estado de São Paulo até segunda ordem. Coincidência ou excesso de poder das empresas que têm tentáculos em todos os segmentos do governo? A punição permanece até hoje -- a tal segunda ordem não foi suspensa. Será sinal de incompetência ou de outros interesses inconfessos, já que se passaram quase seis anos e eles ainda não conseguiram avaliar os projetos que enviamos?
Voltando à matéria da Folha de S. Paulo desse domingo. A Braskem/Odebrecht é quem financiou – e financia -- o estágio de jovens jornalistas na Folha de S. Paulo, entre os quais as duas que fizeram a matéria sobre Minaçu. Elas contaram isso para a senhora?
Fernanda Giannasi – Não. O que me disseram foi que, como trabalho de fim de estágio que estavam fazendo, deveriam produzir matérias que, dependendo da editoria, seriam publicadas na versão impressa ou só internamente. Me causou espanto a Folha mandar duas jornalistas novatas, inexperientes, com tantas mordomias, para fazer uma matéria tão complexa, como é o caso do amianto. É um verdadeiro campo minado que envolve grandes interesses econômicos. E Minaçu, em especial, é o olho do furacão.
O que, de fato, as repórteres lhe disseram?
Fernanda Giannasi - Que tinham escolhido o tema "de ouvir dizer" e que iriam a Minaçu financiadas pela Folha de S. Paulo e sem recursos vindos de empresas ligadas ao amianto. E, aí, sou eu que te pergunto: com as dificuldades financeiras enfrentadas pelos veículos de comunicação do país, como explicar a ida de duas estagiárias de avião para Minaçu durante uma semana? O custo é altíssimo, pois o acesso é muito difícil e distante.
Então, desde o começo ficou com a pulga atrás da orelha?
Fernanda Giannasi – A bem da verdade sim, principalmente porque quando perguntei às duas repórteres quem tinha sugerido pauta tão complexa, elas se entreolharam e me disseram que conheciam alguém que tinha comentado en passant sobre a situação da cidade de Minaçu. Eu não me senti totalmente confortável com as explicações. Até por isso eu o Eliezer (presidente da ABREA) gastamos com elas mais tempo do que dedicamos normalmente a outros jornalistas. Houve um dia em que elas saíram da Superintendência Regional do Trabalho e Emprego, em São Paulo, mais de meia-noite com um pacote de documentos. Eu havia recebido esses documentos sigilosamente de gente lá de Minaçu, ex-empregado com muita mágoa da empresa, contendo informações confidenciais e preciosas. Havia até um relatório da assistente social da SAMA, detalhando as visitas que fazia e a abordagem para oferecer os acordos extrajudiciais às vítimas e seus familiares, cujos valores são absurdamente vis. Dei tudo isso elas, tomando a precaução de entregar cópias ao Ministério Público do Trabalho. Engraçado que elas não criticam, em nenhum momento da reportagem, os acordos extrajudiciais do Grupo Sama/Eternit. Em compensação, usam o termo "de louca" para a líder do movimento das famílias vitimadas pelo amianto, sem ao menos dizer quem é que disse tal infâmia sobre uma filha desesperada para provar que o câncer do pai foi do amianto.
O que pretende fazer agora?
Fernanda Giannasi – No domingo, logo cedo, mandei um e-mail para o Ombudsman da Folha, contestando energicamente o conteúdo da matéria. Também para a editoria do caderno Dinheiro. Agora, vou divulgar o máximo possível o documento enviado. No meu entender, a Folha de S. Paulo feriu seriamente a ética jornalística. O caso já está tendo repercussão inclusive internacional.
(Por Conceição Lemes, Blog Viomundo, 14/07/2009)