Porto Alegre, cidade brasileira pioneira em orçamento participativo e políticas ambientais, além de primeira sede do Fórum Social Mundial, está de volta ao cenário internacional. Escolhida como uma das 12 sedes do campeonato mundial de futebol de 2014, a capital do Rio Grande do Sul, com cerca de 1,4 milhões de habitantes, vive um dilema. Em agosto, seus moradores votarão se aceitam ou não a construção de prédios residenciais na área de Ponta do Melo, às margens do Rio Guaíba. A consulta faz parte de um contexto de planos de grandes obras, como a ampliação de estádios esportivos e construção de avenidas, para receber melhor os visitantes para a Copa do Mundo.
Contudo, alguns desses projetos são questionados na Justiça por seu potencial dano ambiental. A Lei Orgânica de Porto Alegre determina que as áreas próximas às margens de rios são de proteção permanente. A Ponta do Melo, situada entre o centro e zona sul da cidade, antigamente era uma área portuária e de interesse para a segurança nacional. Entre 1952 e final dos anos 90, ali funcionou a empresa Estaleiro Só. Em 1976, o município a isentou do pagamento pela utilização do prédio que ocupava, de 60 mil metros quadrados.
Com a quebra do estaleiro, a Justiça determinou sua execução e leilão para pagar dívidas trabalhistas. Em 2005, os terrenos foram arrematados pela empresa SVB Participações e Empreendimentos que os transferiu à BMPar Empreendimentos. Na época, a Lei Municipal 470/2002 autorizava apenas a construção de instalações comerciais na área, com várias restrições urbanísticas. Em 2008, a BMPar apresentou a um grupo de vereadores a idéia de que um grande projeto teria viabilidade econômica, argumentando que uma obra mista, comercial e residencial, contribuiria para uma maior segurança da área.
A Câmara Municipal redigiu uma reforma da Lei 470, para permitir a construção de prédios residenciais na área, que passou a ser chamada Pontal do Estaleiro. Foi quando começaram os protestos. “O projeto não respeitou a participação da sociedade” disse o vereador Beto Moesch, que votou contra essa lei em 2002 e se opôs à sua reforma no ano passado. Em várias audiências públicas, representantes da empresa eram vistos abraçando vereadores diante de uma platéia que gritava “vendidos”. A Procuradoria abriu processos para investigar denúncias de suborno de legisladores municipais para que apoiassem a reforma, mas o caso foi arquivado. A reforma da Lei 470 foi aprovada em uma tensa sessão, em fevereiro deste ano.
Diante da reação da sociedade, o prefeito José Fogaça vetou o projeto e enviou outro à Câmara, onde constava que a população devia ser consultada. Enquanto isso, foi aprovada uma emenda que ampliou de 30 para 60 metros a faixa de terra que deve permanecer livre entre a margem e as construções. Por isso, a empresa BMPar desistiu de construir edificações no Pontal. Mesmo assim, a reforma da Lei 470 foi novamente votada na Câmara e fixado o prazo de 120 dias para uma consulta pública. Para o Movimento em Defesa da Orla do Guaíba, um sim das urnas às construções residenciais representaria um perigoso precedente de ocupação de áreas ribeirinhas.
Ricardo Gothe, titular da Secretaria Extraordinária da Copa do Mundo de 2014, vinculada à Prefeitura de Porto Alegre, disse ao Terramérica que “essa já é uma área privada e terá atrativos, qualidade e proteção”. Segundo Gothe, o que não se ocupa se destrói. Os ambientalistas recordam que, originalmente, o Pontal foi cedido ao estaleiro pelo município com um fim específico, ao fim do qual deveria retornar ao uso público. O arquiteto e urbanista Nestor Ibrahim Nadruz explicou ao Terramérica que o projeto tornará mais caótico o trânsito na região e causará danos à orla com a construção dos edifícios.
Os edifícios existentes perderão os ventos e a luminosidade natural fornecidos pelo rio, aumentarão o esgoto e o lixo, e a população será privada do famoso pôr do Sol do Guaíba. Enquanto se define o futuro de Ponta do Melo, uma ação popular tenta evitar possíveis prejuízos a outras áreas de preservação permanente. O recurso de amparo, apresentado por ecologistas, pede a urgente suspensão de leis, aprovadas em janeiro deste ano, que autorizam a ampliação dos estádios de dois clubes de futebol, o Sport Club Internacional e o Grêmio Foot-Ball Porto Alegrense.
O recurso alega que os projetos prevêem construções futuras com alturas superiores às permitidas no Plano Diretor da cidade e maior concentração de edifícios por metro quadrado, com impactos negativos em matéria urbanística, ambiental e de segurança aérea. O complexo Beira-Rio, do Internacional, além do teto do estádio, inclui torres de apartamentos, estacionamentos e ruas atravessando um parque, que não são exigências da Federação Internacional de Futebol (Fifa), conforme reconheceram os diretores do clube perante o Conselho Municipal de Meio Ambiente (Comam).
O secretário Gothe disse que ainda não recebeu da Fifa a lista de obrigações para as cidades em matéria de instalações esportivas, infra-estrutura e serviços. Porém, a Secretaria Extraordinária divulgou algumas iniciativas apresentadas como essenciais para receber os visitantes em 2014. “São obras que há 30 anos estão no papel e que, aproveitando um evento da magnitude da Copa do Mundo, obterão o financiamento necessário. Haverá revitalização da área ribeirinha, atraindo turismo e progresso”, afirmou Gothe.
Essa valorização coloca Porto Alegre na mira das grandes empresas imobiliárias. “É possível que a Goldsztein Cyrela opere na Ponta do Melo”, disse ao Terramérica o advogado dessa construtora que faz parte da corporação Cyrela Brazil Realty, a maior companhia dedicada a imóveis residenciais no Brasil. No fundo das discussões está o Guaíba, embora não esteja definido se é um rio ou um lago, debate que também está em curso. A Lei Federal 71/65 estabelece que não podem ser construídas edificações a menos de 500 metros das margens dos rios, para assegurar a preservação desses cursos de água. Entretanto, se o Guaíba for declarado lago, a faixa de proteção obrigatória cai para 30 metros.
Segundo o estatuto da cidade, alterações, como as previstas para a Copa do Mundo, só podem ser decididas com a participação e aprovação da sociedade. Os ecologistas estão desconfiados por causa de experiências anteriores. Em 2007, em uma audiência pública para analisar o Plano Diretor, o Comam denunciou que moradores de outros municípios foram levados de ônibus e receberam refrigerantes de graça para ocupar espaços no recinto e evitar a presença maciça de moradores e ambientalistas de Porto Alegre. Não fosse pela pressão do Comam e do não governamental Fórum de Entidades, teriam sido aprovadas alterações que atenderiam apenas aos interesses dos empresários da construção, afirmam.
(Por Clarinha Glock*, IPS / Envolverde, 13/07/2009)
* Este artigo é parte de uma série produzida pela IPS (Inter Press Service) e pela IFEJ (Federação Internacional de Jornalistas Ambientais) para a Aliança de Comunicadores para o Desenvolvimento Sustentável (www.complusalliance.org)