Com a crise, as condições do mercado brasileiro de gás natural se inverteram: passou de escassez a excesso
O gás natural foi a fonte primária de energia cuja participação mais cresceu na matriz energética brasileira durante esta década, de 3,7% em 2000 passou para 10% em 2008. O início deste crescimento ocorreu graças principalmente à inauguração, no governo FHC, do gasoduto Brasil-Bolívia (Gasbol), com uma capacidade diária de transporte de 30 milhões de metros cúbicos, e à privatização das distribuidoras estaduais também naquele governo. Para criar uma âncora para o gás boliviano importado, o governo FHC criou o Programa Prioritário de Termelétricas (PPT) que também possibilitaria diversificar a matriz elétrica brasileira. Porém, com a maxidesvalorização, em 1999, e a queda de consumo de eletricidade derivada do racionamento, em 2001, o programa não prosperou como se imaginava e o Gasbol tornou-se ocioso.
Em 2003, já no governo Lula, a Petrobras criou o Programa de Massificação do Gás Natural para incentivar o consumo do energético. O principal elemento do programa foi o congelamento dos preços do gás nacional e do boliviano, que a essa altura já representava 50% do total de gás ofertado no país. Diante deste sinal de preço, as distribuidoras estaduais, em particular a Comgás e a CEG, investiram maciçamente na expansão de suas redes para atender novos clientes. A demanda de gás na indústria cresceu a altas taxas e difundiu-se o uso veicular do gás natural. Por razões ideológicas, as termelétricas já construídas passaram a ser demonizadas pela direção da Petrobras e incluídas no inventário da "herança maldita" deixada pelo governo FHC.
Em 2006, entretanto, veio uma surpresa. Os níveis dos reservatórios das hidrelétricas começaram a cair e a economia do país apresentava perspectiva de crescimento, demandando mais energia elétrica. Isso levou o governo a ordenar o despacho das termelétricas a gás, que deixaram de ser malditas e tornaram-se salvadoras da pátria. A surpresa foi que não havia gás suficiente para atender o consumo da geração elétrica e o industrial. Constatou-se que a Petrobras promovera um "overbooking" de gás, ou seja, vendera o mesmo gás através de contratos firmes para dois clientes. A situação foi contornada quando os reservatórios voltaram a se encher e o esperado crescimento econômico foi mais uma vez adiado.
No final de 2007, esse problema voltou a ocorrer. Só que, desta vez, os reservatórios estavam em pior situação e a economia brasileira finalmente deslanchou, crescendo acima de 5%. Para não provocar um "apagas" na indústria o governo, através de uma resolução do Conselho Nacional de Política Energética (CNPE), autorizou o Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) a despachar as termelétricas a óleo antes das usinas a gás, violando o critério de despacho por ordem de mérito econômico utilizado na operação do sistema elétrico. Mais uma vez a sorte bafejou o governo e, no início de 2008, as chuvas afastaram o risco de um novo apagão. Em fevereiro daquele ano, com a finalização do gasoduto Cabiúnas-Vitória, as térmicas a gás do Rio de Janeiro puderam ser acionadas, trazendo um maior grau de conforto para o sistema elétrico, mas, mesmo assim, as térmicas a óleo permaneceram ligadas praticamente durante todo o ano.
Com a chegada da crise econômica em outubro do ano passado, as condições do mercado brasileiro de gás natural se inverteram e se passou de situação de escassez para uma de sobra de gás. O volume de gás natural comercializado em abril de 2009 sofreu uma queda de 35% em relação ao do mesmo mês do ano anterior. Em resposta, tanto as importações de gás boliviano como a produção doméstica de gás nacional foram reduzidas para um patamar de 20 milhões m3/dia cada, totalizando uma oferta total de gás natural de 41 milhões de m3/dia em fevereiro de 2009. Além da crise econômica que influenciou a queda do consumo de gás na indústria, corroboraram para essa situação a redução do fornecimento às térmicas, já que os reservatórios das hidrelétricas estão cheios, e a perda de competitividade do gás em relação ao óleo combustível, devido à queda do preço do barril do petróleo.
Esse novo cenário traz a oportunidade de rever pontos da política nacional de gás natural. Isso está ocorrendo na Comunidade Econômica Europeia. Em abril de 2009, foi aprovado pelo Parlamento Europeu o Terceiro Pacote de Energia. O novo pacote suscitou bastante debate ao propor a desverticalização obrigatória das empresas de gás natural e energia elétrica, implicando a separação de propriedade entre os segmentos de produção e transporte. A proposta de desverticalização obrigatória foi motivada pela constatação de que antigos monopólios integrados bloqueavam o acesso de outras empresas às redes de transporte. O sistema de separação legal em vigor mostrava-se insuficiente para aumentar o grau de concorrência nos mercados de energia.
A favor da desverticalização também se argumentou que as empresas verticalmente integradas tendem a considerar as redes de transporte como ativos estratégicos para seus interesses comerciais e não como servindo ao interesse geral de consumidores da rede. Em particular, algumas firmas deixam de investir na expansão da rede, temendo favorecer concorrentes a avançarem em seus mercados. Entre os integrantes da União Europeia, a proposta de desverticalização sofreu forte oposição de países como França e Alemanha, ambos com grandes empresas estatais no setor de energia. Na falta de um consenso dos países da União Europeia, a proposta final aprovada pelo Parlamento acabou permitindo que as atividades de produção e transporte pertençam à mesma firma. Em contrapartida, foram estabelecidas pesadas restrições regulatórias para garantir a independência do segmento de transporte.
No Brasil, enquanto isso, apesar dos avanços obtidos na nova Lei do Gás, perdeu-se a oportunidade de aperfeiçoar ainda mais a legislação, permitindo, por exemplo, que a propriedade dos ativos de transporte de gás continuassem nas mãos da empresa verticalizada, desde que a operação do sistema de transporte fosse feito por um operador independente. A nova lei também deveria dar mecanismos para obrigar uma total separação entre o preço da commodity e a tarifa de transporte no caso do gás nacional. Com isso fica adiada, até não se sabe quando, a competição efetiva no mercado de gás natural no Brasil.
(Por Adriano Pires e Rafael Schechtman*, Valor Econômico, 09/07/2009)
* Adriano Pires e Rafael Schechtman são Diretores do Centro Brasileiro de Infra Estrutura (CBIE)