Eu trabalhei na GM de novembro de 1999 até abril de 2005. Fui demitido doente. Fiquei internado dois meses em São Paulo no ano de 2000, já em decorrência do trabalho na GM. A GM de São Paulo tem, na linha do Corsa, por exemplo, 4100 funcionários e no RS a linha do Celta possui, hoje, cerca de 2000 funcionários. Só que, em São Paulo, 90% do trabalho é manual. No estágio que fiz lá, fazíamos uma média de 45, com picos de 53, carros por hora. Aqui em Gravataí é diferente: 90% do processo é automático e 10% manual. Lá, não tinha quase doenças do trabalho e aqui mais de 30% dos trabalhadores tiveram problemas, desde compressão da medula e lesões na coluna até depressão.
Eu fui admitido no dia 25-11-1999. Trabalhava na produção com as ponteadeiras [máquina de solda a ponto], que são um tipo de equipamento de solda suspenso por mangueiras cuja espessura é parecida com a do nosso pescoço. Nós tínhamos que nos encaixar dentro do perfil da linha robótica. Um robô dá 50 pontos em 35 segundos e a parte humana não tem como compensar isso. O assoalho do carro é composto de três partes: a parte do porta-malas (assoalho traseiro), depois vai dos pés do banco de trás até o pedal da embreagem (assoalho dianteiro); dali pra frente vem a estrutura dianteira. Essas partes são feitas de forma separada pela linha robótica. Só têm dois humanos colocando as rodas traseiras e um colocando a chapa que monta o assoalho traseiro. O resto um robô passa para o outro até chegar novamente na parte humana que faz a caixa de roda. Quando isso fica pronto, um robô coloca a plataforma, pega as peças, junta tudo, e os robôs vão fazendo tudo sozinhos. Eu trabalhava nesse setor. No início do processo, nós fazíamos 38 unidades por hora, o que já era recorde. Quando batemos 38, a empresa fez uma festa, porque isso é muito difícil.
Eu pegava o equipamento pesado, às vezes dava problema na esteira que puxava três estruturas dianteiras. Então, pegava a talha [é um equipamentos para movimentação e manuseio de materiais], que não tinha o movimento para os lados: ela só subia e descia e é difícil de manipular. Então, quando a usava, ela ia para lá e para cá e, às vezes, causava acidentes. Qualquer descuido com esse equipamento pode fazer com que se esmague a mão e a dor era pior do que choque elétrico. Além de ter que pegar esse equipamento, pressionar, bater, tinha que preencher uma planilha, descrever o procedimento e assinar. E, para piorar, às vezes, a linha era acelerada e o processo ficava terrível. Todo o processo era muito rápido, ou podia causar acidentes terríveis: se deixasse a ponta do pé mais para frente, a chapa podia arrancar os dedos.
No início do processo não tinha nem rodízio. Fomos começar a fazer rodízio só em 2001. A ponteadeira, que era o equipamento com que eu trabalhava, fazia todos os pontos que os robôs não conseguiam fazer. Eram 11 pontos que tínhamos que dar, só que esse é um trabalho cruel. Na frente do carro, sai um cabo que vai para o motor para fazer a troca de marcha. A mangueira do equipamento pesa muito e eu tinha que dar um giro de 180 graus com a mão e ficava com o braço todo torcido. Essa é a parte da contração e foi assim que estourei meus punhos. Com cinco meses de empresa, minhas mãos começaram a inchar. Fui ao médico da empresa que me ignorou e me mandou trabalhar. Em agosto de 2002, foi diagnosticado que eu estava com peritendinite e, num certo momento, não conseguia nem mover as mãos. Esse problema apareceu na primeira ecografia, assim como atrofia muscular.
Teve um dia que a empresa “rateou”, me lembro até hoje. Fez um gráfico de todas as pessoas que foram ao ambulatório médico e os problemas apresentados. Ou seja, ela já tinha uma leitura dos tipos de problemas que estavam surgindo, os tipos de lesões que podiam surgir. E alguém colocou essa planilha no mural. Eu tenho a mania de ler tudo o que tem no mural e fiquei chocado com o que vi, pois ali dizia que 15% dos problemas que se relatavam eram nas mãos. A empresa não pode negar que sabia. O papel foi recolhido e sumiu.
O médico da empresa me examinava e dizia que eu não tinha nada e meu chefe de área me colocava para trabalhar de novo. Comecei, então, a brigar com eles. Outro problema que ocorre lá é que a GM trabalha com um time completo, ou seja, se um sai em férias os outros estão “ralados”. Além de já ser muito difícil com um grupo completo, ainda tem a questão de ser um número certo de pessoas. Não tem quem repor. Com isso, algumas pessoas, sem querer, acabavam fazendo as necessidades na sala de trabalho, causando constrangimento. Se você estiver doente e cair no meio da linha, mas não estiver atrapalhando o processo, eles continuam o trabalho normalmente. A GM não tem respeito algum pela vida. Quantas vezes fui ao médico da GM e ele dizia que eu não tinha nada. À tarde, eu ia ao Hospital Moinhos de Vento e diagnosticavam tendinite crônica.
Eu ia para casa sem sentir minhas mãos. Depois de um tempo, eu saí da produção e fui trabalhar na qualidade, onde eu lixava as chapas cruas. Ali, meus problemas nos punhos se agravaram, a tendinite se desenvolveu nos cotovelos, nos ombros e não consegui mais mexer os braços com rapidez. Meu primeiro afastamento foi em dezembro de 2000 e em fevereiro me deram alta, mas não consegui trabalhar. Me afastei de abril a agosto de novo, tentei trocar de setor e não consegui. Em novembro, meus cotovelos estouraram e me afastei novamente. A parte médica da empresa sempre se omitiu e a contraprova, para valer, tinha que ser feita numa clínica conveniada com a GM. Eu chegava na clínica e o laudo já estava pronto dando negativo também.
Encontrei muitas dificuldades. Em novembro de 2001, eu pedi o documento, mais uma vez, de Comunicação de Acidente de Trabalho – CAT, e a GM disse que não ia me dar porque eu não tinha nada. Aí eu fui para o sindicato que reconheceu meus problemas nos punhos, nos cotovelos, nos ombros e nos joelhos em função dos movimentos que eu fazia e do peso que carregava. Voltei em setembro de 2002, com uma recomendação médica que dizia: “Manter o João em função compatível e que não realizei esforço repetitivo”. No entanto, eles me mandaram para a mesma função que eu exercia. Nunca me neguei a trabalhar, só que eles me colocavam na talhadeira, me davam uma marreta e mandavam eu bater chapa só para “pedir minhas contas”. Mas não aguentava de dor. Em 2003, entrei para a Comissão Interna de Prevenção de Acidentes – CIPA, onde fiz vários projetos de ergonomia e por isso me odeiam até hoje. Fui atender um acidente de trabalho e, em virtude disso, me deram uma advertência de cinco dias porque eu tinha “abandonado” meu local de trabalho.
A Delegacia Regional do Trabalho – DRT já multou a GM por minha causa, porque eu não podia exercer aquela função. Passava uma semana e me mandavam voltaram para a mesma operação. Já me humilharam várias vezes, fizeram assédio moral. Uma vez me mandaram ficar meu horário inteiro sentado em frente a uma mesa para que todos passassem por mim e ficavam olhando. Se chegasse atrasado, já xingavam. A política da GM é brutal. Tenho direito como paciente, a Justiça não faz nada e a empresa se nega a me dar meus direitos. Eu e mais dois colegas denunciamos a presidência da empresa para a Previdência. Tem muitas pessoas mutiladas trabalhando dentro da GM. Tem um cara lá que parece o “corcunda de Notre Dame”, porque trabalha com a coluna toda torta. Uma vez me mandaram para o Centro Médico da GM, me deram uma injeção de Voltaren [medicamento à base de diclofenaco, um anti-inflamatório não-esteróide com ação analgésica] e me mandaram ir de volta para o trabalho.
Além de tudo isso, na GM não temos horário para almoçar. No papel, meu horário de almoço era às 10h45, mas certa vez o robô estragou às 10h e me mandaram ir almoçar antes porque o robô só podia ser utilizado de novo uma hora depois. Em consequência dos problemas que adquiri nos tempos da GM, hoje tenho depressão. Com 42 anos, não consigo trabalhar, tenho muita dor ainda hoje. Perdi 50% de força em cada braço. Em 27 de março de 2008, saiu a decisão da Justiça do Trabalho de Porto Alegre, que converteu todos meus benefícios desde 2000.
Em 2007, foi a primeira vez que o INSS me examinou. O médico ficou apavorado e caracterizou minha doença como ocupacional. Fiquei sete anos brigando e teve momentos em que nem acreditava mais que ia conseguir ter direito aos meus direitos. Eu sinto muita falta de trabalhar, mas tenho amor próprio e família. Acho ótimo saber que minha produção é valorizada pelas pessoas, mas a realidade da GM é muito dura. Muita gente trabalhando doente. Agora, com a crise, muitas dessas pessoas foram demitidas. Nas audiências em Gravataí, a GM só falta rir na nossa frente, pois a Justiça da cidade é muito omissa em relação ao trabalhador. Para a GM, a vida não existe.
(Por João Carlos Fragoso, IHUnisinos, 26/06/2009)