Em discurso no plenário do Congresso na última terça (30/06), a senadora, psicóloga e presidente da Confederação Nacional da Agricultura, Kátia Abreu (DEM-TO), repetiu o argumento muito usado ultimamente por ruralistas para validar suas propostas de mudanças no Código Florestal: o apoio da ciência e da pesquisa. “Porque a ciência é a luz mais importante que um país pode ter”, disse.
A arenga de Kátia Abreu se soma às preleções do ministro Reinhold Stephanes (Agricultura), outro que usa e abusa da “ciência” para justificar suas proposições. O estudo que tanto veneram é encabeçado pelo pesquisador Evaristo Miranda, da Embrapa Monitoramento por Satélite. De acordo com a última versão da análise, “apenas” 33%, ou aproximadamente 300 milhões de hectares, do país estariam disponíveis para atividades econômicas se a legislação fosse cumprida à risca. A primeira versão do estudo mutante apontava apenas 6% disponível do território, depois o índice passou para 29%, e finalmente para 33%.
Respaldados no índice e no argumento de que o alcance territorial da legislação ambiental e indigenista inviabiliza maior “produção de alimentos”, ruralistas querem encolher a proteção de áreas de preservação permanente (APP) e de reservas legais e assim angariar mais terras para atividades econômicas. O movimento ganhou eco em estados como Rio Grande do Sul e Santa Catarina. Mas a ladainha ruralista é seletiva, pois esquece de outros dados científicos que comprovam a importância da manutenção e recomposição das matas em todos os biomas, já tão degradados.
Falam os cientistas
Há vários anos, pesquisadores de universidades renomadas do Brasil e exterior vêm alertando, por meio de artigos na imprensa e trabalhos acadêmicos, para a importância da manutenção de reservas legais e APPs. Um deles é Jean Paul Metzger, professor da Universidade de São Paulo especializado em temas relativos a paisagens fragmentadas e conectividade biológica.
Em 2002, quando as mesmas questões hoje em debate eram discutidas, Metzger atentou para uma característica importante, tanto no discurso de ruralistas, quanto de ambientalistas. “Essa discussão está baseada essencialmente em critérios econômicos (expansão das atividades agrícolas), por um lado, e de sustentabilidade ambiental, por outro. Poucos argumentos biológicos têm sido levantados", disse, em artigo publicado na Revista Ciência Hoje.
Passam-se os anos e os mandatos, e os discursos continuam os mesmos. O bom para o meio ambiente é que, do ponto de vista biológico, os argumentos também permanecem fortes pela defesa da conservação. A Amazônia é um exemplo didático. Lá, as APPs abrangem essencialmente igarapés, igapós e florestas sazonalmente ou permanentemente inundadas. Já as reservas legais cobrem florestas de terra firme, muito diferentes das matas inundadas. “Em termos de conservação da biodiversidade, APPs e reservas são sistemas complementares, que protegem conjuntos de espécies distintos”, disse Metzger, em entrevista a O Eco.
Se APPs e reservas legais forem somadas, como propõe Stephanes, menos áreas em terra firme seriam protegidas e tais regiões planas poderiam se transformar em imensos desertos biológicos, de acordo com o pesquisador. Isso porque pequenos fragmentos de vegetação natural dispersos por áreas agrícolas permitem conservar espécies que necessitam de pouca área para sobreviver, e funcionam também como “trampolins ecológicos” entre grandes fragmentos. Além desses benefícios, essas áreas têm outras funções econômicas relevantes, como ajudar no controle de pragas, ser fonte de espécies para polinização e fazer sombra para o gado. “A heterogeneidade (de paisagens) é benéfica para a conservação de muitas espécies”, explica Metzger.
Carlos Peres, biólogo paraense e diretor do Departamento de Ciências Ambientais da Universidade de East Anglia (Inglaterra), conta que APPs em áreas de topografia suave melhoram a conectividade da paisagem e garantem os fluxos de fauna e flora em áreas fragmentadas. Elas ainda garantem a qualidade da água que irriga propriedades. “As reservas legais também são muito importantes do ponto de vista de conservacao, porque mesmo em pequenas propriedades, elas exercem um papel crucial de retenção de espécies florestais menos exigentes nos seus requerimentos espaciais", explica o autor de vários estudos sobre a importância de corredores ecológicos na Amazônia.
Se argumentos biológicos não convencem, que o foco se volte para a experiência concreta de agricultores, sugere Marcelo Gonçalves de Lima, mestre em ecologia pelo Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) e doutor em Ecologia pela Universidade de Brasília. “Estive em dezembro do ano passado no município de Carlinda, no Mato Grosso, e lá os assentados querem promover a recuperação das APPs. Por quê? Porque ficaram sem água”, comenta.
Precaução como princípio
As propostas de mudança nas leis ambientais, sejam aquelas que pedem redução de tamanho ou introdução de espécies economicamente exploráveis em APPs e reservas legais, foram recebidas de forma muito negativa pelos pesquisadores. Suas palavras são balizadas em anos de estudos científicos.
A determinação do percentual de reservas legais, por exemplo, foi formulada usando-se a “teoria da percolação”. Inicialmente desenvolvida no campo da física, ela foi usada para responder qual a quantidade mínima de vegetação que permita a movimentação de espécies. Para chegar a uma resposta, biólogos fizeram inúmeras simulações em computador até que o índice ideal fosse indicado.
Para Marcelo Lima, hoje consultor do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) no Ibama, diante da ínfima quantidade de pesquisas a favor dos ruralistas, é chegada a hora de se aplicar o princípio da precaução. “Esse princípio é a garantia contra os riscos potenciais que, de acordo com o estado atual do conhecimento, não podem ser ainda identificados. Ele afirma que a ausência da certeza científica formal, a existência de um risco de um dano sério ou irreversível, requer a implementação de medidas que possam prever este dano”, explica.
Desgosto acadêmico
Em 1992, quando o mundo parece ter despertado para o meio ambiente, o cientista indiano Mambillikalathil Menon, então presidente do Conselho Internacional das Comunidades Científicas, discursou na abertura do Conselho das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento. Na ocasião, afirmou que a função da academia e entidades de pesquisa é “sempre fornecer dados que subsidiem uma decisão política, que atenda à demanda da sociedade hoje sem comprometer as futuras gerações”, e que “não é suficiente monitorar mudanças. É necessário modelar a natureza da mudança, reduzir incertezas e fornecer uma análise que dirá à humanidade para onde ela caminha”.
Jean Paul Metzger, Carlos Peres e Marcelo Lima possuem opinião semelhante. Por isso, o uso de argumentos cientificistas em prol do abrandamento de leis ambientais tem causado neles, e em seus colegas de trabalho, uma certa decepção. Para os pesquisadores, a academia já apresentou estudos científicos suficientes sobre a importância de se conservar APPs e reservas legais. “É impressionante como nossos legisladores são mal preparados ou mal assessorados para evitar mudanças radicais na legislação ambiental. São as leis atuais que conferem alguma proteção ao patrimônio natural do país, para o benefício de todos no longo prazo”, diz Carlos Peres.
Sobre uma decisão final quanto ao imbróglio da proteção ambiental brasileira, Paulo Gustavo Prado, da não-governamental Conservação Internacional, espera que um desfecho não tenha contornos essencialmente políticos. “A saída é técnica. Não importa o que ruralistas ou ambientalistas acham, mas sim aquilo que contemple os interesses da sociedade”, defende.
(Por Cristiane Prizibisczki, O Eco, 02/07/2009)