Os índios têm medo de falar, mas, quando falam, contam que, quando o exército atacou, eles estavam desarmando o piquete, e que, depois do massacre, um helicóptero fez várias viagens para recolher os cadáveres.
Para chegar à comunidade aguaruna de Yamayaca, no Peru, um povoado de 300 pessoas, é preciso viajar três horas de caminhonete por uma pista de terra solta que parte da cidade de Bagua e entra na selva, e depois cruzar o rio Marañón, afluente do Amazonas, em uma canoa ou um pequeno bote de madeira, chamado de "peque peque" pelo barulho que seu lento motor faz. Os aguarunas pertencem à família étnica dos jíbaros. Seu território tem 22.700km quadrados e 60 mil integrantes. As comunidades mais distantes estão a cinco dias de viagem de Bagua, cidade de 75 mil habitantes que está a mil quilômetros ao noroeste de Lima.
Na rua de terra que cruza Yamayaca, onde as crianças jogam futebol chutando uma lata, encontramos Bacilio Dekentai. Ele nos diz que tem 40 anos e quatro filhos e que vive em sua chácara. Como em todas as comunidades aguarunas, o que ele semeia ali é banana e mandioca, os dois alimentos básicos da dieta dos nativos, e um pouco de cacau e de café. A chuva converteu a rua em um lodaçal. As crianças que jogavam desapareceram. Depois de muitas dúvidas, Bacilio aceita contar o que viu durante a cruel operação policial para desalojar os índios que bloqueavam uma estrada nos arredores de Bagua, na zona chamada de Curva do Diabo, que exigem que se modifique uma série de leis que facilitam o ingresso das transnacionais em seu território. "Atacaram-nos como se estivéssemos na guerra. O ataque começou antes das seis da manhã. Os primeiros disparos vieram de um morro. Quase mil de nós subiram ao morro pedindo que não disparassem, mas não nos ouviram. Estávamos desarmados, porque a nossa greve era pacífica. Atiravam para matar. Havia muitos mortos. Eu vi quando mataram dois feridos que estavam no chão".
No meio dos disparos, Bacilio se escondeu na parte alta do morro. Assegura que, dali, viu um helicóptero recolhendo cadáveres. "Vi duas viagens do helicóptero. Em cada viagem, ele recolheu quase trinta mortos. Ninguém sabe aonde ele os levou. Vi com os meus próprios olhos". Os números oficiais registram dez civis e 24 policiais mortos.
A uma hora de Yamayaca está a comunidade de Wawas. Enquanto caminha entre as pequenas casas de bambu, madeira e telhado de folhas de palmeira em que vivem os 600 habitantes de Wawas, o apu (chefe) da comunidade, Heriberto Tiwijan, relata sua história sobre o que ocorreu na Curva do Diabo. "Eu estava dirigindo um grupo de 50 moradores da minha comunidade. No total, éramos quase três mil. Atacaram-nos pela terra e pelo ar. De um helicóptero, jogavam bombas de gás lacrimogênio e atiravam. Na pista, a polícia avançava contra nós, disparando no corpo. Também nos atacavam de um morro. Eu vi três corpos queimados. Esses não estão entre os dez cadáveres que recuperamos".
Tiwijan nos leva até a cada de um dos feridos. Grimaniel César, que tem 26 anos e um filho, está deitado sobre o piso de terra da sua casa. Recebeu um tiro na perna e não pode ficar de pé. Mal consegue falar por causa da dor. "A bala atingiu a parte de cima da perna. Entrou pela frente e saiu por trás. A dor é muito forte. Sinto queimar por dentro. Não tenho nenhum remédio para tomar". Grimaniel respira profundamente, faz um esforço para aguentar a dor, que se reflete com intensidade em seu rosto, e continua: "Subi ao morro quando começaram a atirar em nós para pedir que não disparassem. Os policiais disparavam no corpo, para matar. Nunca pensamos que isso podia acontecer. As balas voavam por todos os lados. Vi dez irmãos caírem mortos ali no morro (o governo assegura que morreram três nativos no morro). Os feridos no morro eram tantos que não podíamos contar. Todos corriam para salvar a sua vida. Uma bala me acertou na perna, e eu caí no chão. Um amigo teve coragem e me carregou até a pista, onde havia uma ambulância. Se a polícia me encontrasse ferido, certamente me mataria".
Sekut Díaz, uma mulher aguaruna de 36 anos, também esteve na Curva do Diabo. Com a dor marcada no rosto e tirando o medo de cima – "Temos muito medo de falar e de dizer a verdade do que aconteceu, porque depois vêm represálias, mas alguém tem que falar, porque se ninguém fizer ouvir a sua voz nunca se saberá a verdade" –, ela denuncia ter visto a polícia matar os feridos que haviam ficado para trás, porque ninguém conseguiu ajudá-los a escapar. "Atacaram sem compaixão, como se fôssemos o pior inimigo. Eu me escondi próximo da pista e dali vi como a polícia matava alguns irmãos que estavam feridos. Atiravam neles quando estavam no chão.Também vi como queimaram outro irmão. Vi como o seu corpo ardia. Ele mexia os braços e as suas pernas".
Fugindo da Curva do Diabo, os nativos chegaram até Bagua. Ali, a população mestiça da cidade havia se levantado ao ouvir sobre a repressão contra os índios e a polícia que os estava reprimindo. "Em Bagua, vi uma mulher e uma menina feridas a bala. Não sei o que aconteceu com elas depois. E também vi dois mortos: um mestiço gordo que tinha um tiro no peito, e um irmão awajún (aguaruna), Felipe Sabio, no qual a polícia atirou de um telhado. O irmão caiu por causa de um tiro na perna e, quando estava no chão, os franco-atiradores o mataram", reevla Salomón Awananch, apu da comunidade de Nazareth.
Em sua casa de uma peça em Wawas, a jovem viúva de Felipe Sabio chora a morte de seu esposo com seu pequeno filho nascido há poucos dias nos braços. É o quarto de seus filhos e nasceu no dia 11 de junho, seis dias depois que mataram seu pai. "Meus filhos ficaram sem pai, sem ninguém que olhe por eles. Dizem que as esposas e os filhos dos policiais mortos estão sofrendo, e por isso o governo vai lhes dar uma indenização. Mas não reconhecem nada para nós. Também exigimos uma indenização... Ou por acaso nós também não estamos sofrendo, por acaso meu esposo era um cachorro que morreu, por acaso nós também não somos seres humanos?", reclama, com a voz entrecortada e lágrima de dor, mas também de indignação e raiva pela maneira como mataram seu esposo e pela forma como o governo faz com que se sinta o esquecimento e a marginalização em que os povos indígenas vivem.
(Por Carlos Noriega, com tradução de Moisés Sbardelotto, Página/12 / IHUsininos, 04/07/2009)