O Brasil possui mais de um milhão de quilômetros quadrados em terras indígenas (TIs), homologadas ou nas fases que antecedem sua regularização. O montante representa menos de 13% do território brasileiro. As atividades desenvolvidas dentro de terras indígenas, como pesca, caça e roçado, por exemplo, são consideradas de baixo impacto. No entanto, elas não deixam de alterar os ecossistemas.
O tema é complexo e controverso. Mesmo quando ações ilegais cometidas pelos próprios índios, como extração de palmito, venda de madeira e garimpo, estão fora da discussão, a criação de um sistema integrado de gestão da terra em TIs gera polêmica. Isso porque cada etnia tem seu modo próprio de lidar com os recursos naturais e muitas delas dividem territórios ou bacias, isto é, lidam de modo diferente, e impactam de forma diferente, uma área comum. Isso sem falar nas pressões no entorno das reservas. O uso inadequado de recursos hídricos e pesqueiros de um rio que nasce fora da terra indígena, por exemplo, pode causar escassez de peixes e assoreamento no leito que corta aquela área.
Com o aumento da disponibilização de serviços de saúde nas aldeias nas últimas décadas, as populações indígenas também começaram a crescer. Como estão confinadas em um território restrito, o escasseamento de recursos é uma realidade que muitas comunidades agora enfrentam.
Apenas em 2007, com a troca de toda a gestão na Fundação Nacional do Índio (Funai), o tema foi levado para a mesa de discussões. Na época, um grupo de trabalho com ministérios da Justiça e do Meio Ambiente foi criado para discutir sistemas de gestão. O documento deve ser finalizado no final deste ano e, em abril de 2010, a Funai espera a sanção do presidente Lula. “Demorou muito [para que o poder federal desenvolvesse a política], mas é uma situação que pelo menos esse governo tentou encarar”, diz Iara Vasco, coordenadora-geral de Patrimônio Indígena e Meio Ambiente da Funai.
Segundo ela, já existem parcerias com Pará, Amazonas, Bahia e Acre, estado que está mais à frente na questão. Os planos atuais foram feitos a partir de acordos com os governos estaduais que, por sua vez, fizeram acordos com as comunidades indígenas. “Os planos são acordos políticos, por isso dependemos dos estados para fazê-los”, explica a coordenadora. Os trabalhos, de acordo com Iara, contam com apoio técnico e financeiro do governo alemão, que disponibilizou seis milhões de dólares. A contrapartida do governo brasileiro é de 18 milhões de reais.
Experiência acreana
Por enquanto, apenas a Terra Indígena Kaxinawá e Ashaninka do Rio Breu, na divisa do Acre com o Peru, possui planos de gestão implementados. Os trabalhos começaram há cerca de 20 anos, com a formação de professores indígenas e, mais recentemente, agentes agroflorestais indígenas. No início da década, a não-governamental The Nature Conservancy (TNC) se juntou à Comissão Pró-Indio do Acre, que propiciava tais formações nas aldeias, e deu forma ao plano, com técnicas de etnomapeamento e gestão. “Isso [criação de planos] parte do entendimento que a TNC chegou sobre o desbalanço enorme na distribuição de recursos pelo governo. Os recursos maiores sempre vão para parques, num cenário onde a maioria das aldeias indígenas não estão mais isoladas e precisam de apoio”, diz Marcio Sztutman, coordenador do Programa Terras Indígenas da Amazônia da ong.
A terra indígena em questão possui 31.277 hectares e tinha 402 pessoas em 2007. São sete aldeias no total, sendo seis dentro da terra indígena e uma na Reserva Extrativista do Alto Juruá. A situação antes da demarcação da terra e implementação do Plano de Gestão é exemplificada pelo índio José Samuel Kaxinawá. “Antes de demarcar a nossa terra, a gente não estava muito preocupado em fazer manejo, estávamos acabando com os jacarés, os tracajás, os peixes”, disse, em depoimento que integra o livro “Plano de Gestão Terra Indígena Kaxinawá e Ashaninka do Rio Breu”, sobre a experiência na aldeia. Desde 2000, Samuel é “agente agroflorestal indígena”, figura essencial para a implementação e continuidade dos planos.
Segundo Sztutman, o primeiro passo para dar início aos trabalhos foi a identificação de organizações parceiras, como a Comissão Pró-Índio do Acre. Então, foram realizadas oficinas de mapeamento étnico nas aldeias, para identificar onde se encontravam os recursos naturais, quem fazia o manejo, e os problemas encontrados, como descarte de lixo, poluição das águas, invasão de gado, incêndios, entre outros. “Colocamos no papel o que existe há milênios, porque eles já possuíam sistemas de manejo, mas que precisava ser modernizado”, disse.
O resultado do trabalho é uma série de normas, como: “fica proibida a venda de madeira tirada da terra indígena; canoas, barcos, madeira serrada e outros produtos da madeira também não podem ser vendidos para fora”, ou “somente podemos pescar com tarrafa de malha graúda (acima de dois dedos) nos poços limpos dos rios, igarapés e lagos”, ou ainda “se a família é grande, o roçado pode alcançar três hectares; se a família é pequena, um ou dois hectares”.
Segundo Fabrício Bianchini, coordenador dos cursos de agentes agroflorestais da Comissão Pró-Índio do Acre, as comunidades têm seguido as ações previstas nos planos. “O plano não tem perspectiva de que vire lei, mas que seja incorporado pela comunidade e voltado para a ação que a comunidade pensa”, diz.
Tanto para Bianchini quanto para Márcio Sztutman, da TNC, o plano tem também valor político. “Verificamos um fortalecimento das aldeias depois do plano. O discurso está mais coeso e eles conseguem negociar [com os governos] com muito mais facilidade”, diz Sztutman. Atualmente, 16 terras indígenas do Acre têm planos de gestão ambiental elaborados e 126 agentes agroflorestais das comunidades foram formados.
Outra experiência
Desde 1995, o Instituto Socioambiental (ISA) desenvolve o Programa Xingu, no parque indígena de mesmo nome. Entre os vários objetivos do programa, como ampliar autonomia econômica das comunidades e promover seu fortalecimento cultural, está o de capacitar os índios para a gestão de seus recursos naturais tradicionais. Segundo André Villas-Boas, coordenador do programa no ISA, as atividades que envolvem uso do solo e recursos naturais podem ser classificados como uma “experiência de gestão”, não como um plano, mas que, na prática, possuem o mesmo fim.
Para ele, a criação de planos de gestão é um grande desafio, mas que precisa ser encarado, haja vista a grande participação de comunidades indígenas na população brasileira – na Amazônia, 40% da população é indígena. “A elaboração de planos passa pela capacidade de diálogo com índios e governo”, diz. Só no Parque Indígena do Xingu, que possui 2,8 milhões de hectares, há cerca de 4.700 índios, de 14 etnias, que falam línguas diferentes e estão distribuídas em 49 aldeias.
Situação das terras
Após o Supremo Tribunal Federal ter aprovado a homologação contínua da Terra Indígena Raposa/Serra do Sol, com 1,7 milhão de hectares, em Roraima, 12% do território nacional passou a ser ocupado por terras indígenas regularizadas, de acordo com a Funai. Por todo o território brasileiro, distribuem-se 403 terras indígenas regularizadas. Além dessas, existem outras 20 homologadas, 49 declaradas, 24 delimitadas e 137 em estudo. Outras 23 terras foram compradas pelos índios ou pela União. Todas essas terras, somadas, ocupam 1.075.222 Km2, ou 12,63% do território.
(Por Cristiane Prizibisczki, O Eco, 30/06/2009)