Ao criar facilidades para a transferência de propriedades públicas aos posseiros nas terras da Amazônia Legal, por meio da Medida Provisória 458, sancionada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva na semana passada, o governo "estimula a cultura de que vale a pena ocupar a terra", diz o pesquisador Paulo Barreto, do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon).
Segundo Barreto, o governo terá de redobrar a atenção com as terras que ainda não foram ocupadas. "Se ele (governo) não quer repetir daqui a alguns anos essa mesma medida, terá de tomar muito cuidado com as terras públicas, que ainda não estão ocupadas", diz o especialista. De acordo com Barreto, a situação torna-se ainda mais preocupante na medida em que o governo faz novos investimentos em infraestrutura na região amazônica. "Ou seja, dando mais acesso à região", diz.
O pesquisador do Imazon vê de forma "positiva" o fato de o presidente Lula ter derrubado os artigos mais polêmicos da MP 458, que haviam sido incluídos pelos deputados. "Mas ainda assim há pontos negativos. As terras deveriam ser vendidas a preço de mercado", diz.
A seguir, trechos da entrevista com Paulo Barreto.
BBC Brasil - Havia dois pontos polêmicos no texto da MP 458, que foram vetados. O resultado final foi positivo, em sua opinião?
Paulo Barreto - A forma original da MP já continha vários pontos negativos e na Câmara foram acrescentados outros que pioraram a situação. A remoção de parte do que foi introduzido é positivo. Mas há pontos negativos ainda.
Quais pontos, por exemplo?
Barreto - Eu apontaria a regularização das terras a um custo muito baixo para o posseiro. Isso valida um modelo que está na cultura das pessoas de que vale a pena ocupar a terra ilegalmente, que o governo sempre vai criar condições para regularizá-la e, muitas vezes, em condições muito favoráveis. O posseiro terá 30 anos para pagar, o que acaba constituindo um subsídio. Isso cria uma expectativa de que isso pode ser repetido no futuro. É um modelo que se repete e cria a expectativa de que o governo sempre dará um jeito.
Que grande mudança deveria ter sido feita?
Barreto - Minha avaliação é de que todo mundo deveria pagar preço de mercado e pagar à vista. Você tem que tirar os subsídios que acabam incentivando um modelo para as pessoas continuarem ocupando.
Mas isso não inviabilizaria a reforma fundiária?
Barreto - Há uma questão curiosa nesse debate. O governo argumenta que essas pessoas estão lá há muito tempo e, portanto, têm certos direitos. Se elas estão lá há muito tempo, elas estão capitalizadas. Estão há anos explorando a terra, sem nem pagar aluguel. Ou seja, usaram essa terra durante anos gratuitamente. Dizer agora que essas pessoas não têm dinheiro para pagar é uma loucura, significa que o Brasil está jogando recursos no lixo. Não há justificativa para a doação ou para vender as terras abaixo do preço de mercado. Se as pessoas estão lá há muito tempo, significa que teriam de pagar até mais.
Agora que a lei já está em vigor, o que será a grande dificuldade para colocá-la em prática?
Barreto - A lei diz respeito às áreas onde já está acontecendo o desmatamento. As condições de fiscalização são as mesmas de hoje: não são ideais, o governo aplica as multas, mas tem um problema grave, de falta de punição. Esse é até um aspecto positivo da lei: ao regularizar a situação dos posseiros, o governo facilitará a punição. O que é muito importante fazer paralelamente à lei, e não vejo uma medida clara sobre isso, é o que fazer com as terras que não foram ocupadas ainda. Já que o governo está validando um modelo de "ocupa que depois a gente regulariza" e se ele não quer repetir daqui a alguns anos essa mesma medida, terá de redobrar a atenção com as terras públicas, que ainda não estão ocupadas. Isso é especialmente importante agora que o governo está prometendo e fazendo novos investimentos em infraestrutura, ou seja, dando mais acesso à região.
Existe ainda o argumento de que o posseiro é um criminoso e que, portanto, deveria ser retirado da região e não beneficiado. Vocês trabalham com essa visão também?
Barreto - Existem dois blocos de casos e o governo não tem tido a capacidade de separar o joio do trigo. Tem gente que, de fato, veio para a região com incentivos do governo , com a expectativa de que essas posses seriam regularizadas. Nesse tipo de caso, é necessário que o governo regularize. Mas teve também muita gente que chegou depois, quando o governo não oferecia mais qualquer incentivo. O ideal era que o governo fizesse essa separação. Uma forma seria não regularizar quem chegou mais tarde. A lei permite a regularização de quem chegou até dezembro de 2004, o que é muito recente.
Como que você analisa a nova lei no contexto da política ambiental brasileira? É correto dizer que o meio ambiente está em segundo plano?
Barreto - No ano passado, o governo tomou medidas duras contra o desmatamento. Inclusive, proibindo o crédito para quem não tivesse a documentação, o que teve uma reação grande, pois justamente muita gente não tinha documentação. Essa nova lei é uma tentativa de ajustar quem já tinha ocupado ilegalmente, para que tivesse a possibilidade de se regularizar. Como há demandas contraditórias da sociedade, o governo fica em um movimento pendular. Às vezes agrada para um lado, às vezes agrada para outro. Isso é reflexo da falta de uma visão mais integrada de que como tratar a questão da Amazônia. E essa não é uma tarefa para ministério, e sim para o presidente.
(Fabrícia Peixoto, BBC / Amazonia.org.br, 30/06/2009)