A descoberta da cutia preta no Parque Nacional (Parna) de Anavilhanas, no fim do ano passado, foi um estímulo a mais e reforçou a proposta dos analistas ambientais do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) que atuam na unidade de conservação de que a região é um local perfeito para o desenvolvimento de pesquisas científicas, não só pela alta biodiversidade local, mas também por ser uma das áreas menos estudadas da Amazônia. Trata-se do primeiro registro de uma cutia preta na região. De acordo com o biólogo e analista ambiental Bruno Marchena, essa descoberta indica que estudos em Anavilhanas podem auxiliar na discussão científica sobre a distribuição dessa e de outras espécies tanto da fauna quanto da flora amazônidas.
Importantes dispersoras de sementes, em época de escassez de alimentos, as cutias enterram frutos e sementes para se alimentar posteriormente. “Elas comumente esquecem onde enterraram essas sementes, as quais germinam, muitas vezes, longe da planta-mãe, o que é interessante para a semente, pois ela acaba se estabelecendo longe da competição por recursos de uma árvore da própria espécie”, explica Marchena. As cutias são também indispensáveis para a dispersão de sementes de árvores importantes da região amazônica, como a castanheira.
Além da cutia preta, a pesquisa com mamíferos, realizada por Marchena, proporcionou o entendimento sobre a relação entre a estrutura da floresta e a ocorrência das espécies, além do registro científico de oito espécies de mamíferos ameaçados de extinção, como médios e grandes felinos, a ariranha, tamanduá-bandeira, tatu-canastra e o macaco cuxiú, bem como a constatação de mais de 30 espécies diferentes de mamíferos.
Potencial científico
As descobertas são resultado da parceria inédita no âmbito das pesquisas científicas entre a equipe gestora da unidade de conservação, pesquisadores, universidades e institutos de pesquisa do Amazonas. Em 2006, a equipe do Parna constatou que Anavilhanas sempre teve grande potencial para a pesquisa. Depois de intenso trabalho de aproximação com a comunidade científica, firmou um acordo com dez instituições e com dez pesquisadores autônomos da Amazônia para desenvolvimento de pesquisas no parque sobre fauna, flora, clima, recursos hídricos, geomorfologia, socioeconomia, educação, Sistema de Informações Geográficas (SIG), uso público e patrimônio cultural material e imaterial.
Em conjunto, essas equipes inauguraram o primeiro Comitê Técnico-Científico (CTC-Anavilhanas) de uma unidade de conservação no País, revisaram o Programa de Conhecimento de Anavilhanas e atualizaram o Plano de Manejo. Menos de três anos depois vieram os resultados.
Parceira com universidades
A parceira com a Universidade Federal da Amazônia (Ufam) e com o Instituto Nacional de Pesquisa da Amazônia (Inpa) reverteu-se em um elevado número de pesquisas em andamento em Anavilhanas. Marchena disse que em apenas dois anos houve mais pesquisas do que nos últimos dez anos de história da unidade de conservação. Os novos registros de fauna e de flora e a aproximação com a comunidade científica intensificaram a busca pela unidade para desenvolvimento de pesquisa e para realização de cursos de graduação e de pós-graduação, congressos e workshops científicos.
Mais de 100 estudantes passaram pelo Parna no ano passado. A Ufam levou várias turmas do curso de graduação em Ciências Biológicas para aulas de campo, com a orientação do professor Thierry Gasnier, integrante do CTC-Anavilhanas. A unidade sediou também o curso de Biologia da Conservação do Programa de Pós-Graduação de Diversidade Biológica, ministrado pelo professor da Ufam e integrante do CTC, Ronis da Silveira. Esse curso capacitou cerca de 20 estudantes de mestrado e doutorado.
Durante o programa, foram discutidos diversos temas, como conservação biológica, gestão de unidade de conservação, genética da conservação, bem como a realização de trabalhos de campo. Os estudantes chegaram a participar da reunião do Conselho Consultivo do Parque Nacional. Todo ano Anavilhanas recebe o Curso de Ecologia da Floresta Amazônica, organizado pelo professor e pesquisador do Inpa, José Luis Camargo, também do CTC, que reúne estudantes de todo o Brasil.
Na avaliação de Marchena, as parcerias são uma forma de a unidade cumprir seu papel de educadora ambiental. No ano passado, ela abrigou também estudantes de graduação e de pós-graduação de outras universidades e institutos de pesquisa e sediou o Congresso Internacional de Herpetologia, que reuniu cientistas do mundo todo. Dentre os vários estudos em andamento advindos da parceria, o Inpa destaca-se com uma pesquisa para descobrir o impacto da extração ilegal da madeira no arquipélago. Por intermédio do Comitê Técnico-Científico, a pesquisadora membro do CTC, Flávia Costa, após conhecer os problemas enfrentados pelo parque, estimulou sua orientanda a abordar e pesquisar os problemas oriundos da extração ilegal da madeira na unidade.
Flora em extinção
Considerado um dos maiores problemas do parque nacional, a extração ilegal é objeto de pesquisa da mestranda Andressa Scabin, do Inpa. Ela busca vestígios da extração ilegal das espécies de madeiras mais exploradas na região, como as ucuúbas (Virola spp.), o arapari (Macrolobium acacifolium), a jacareúba (Callophylum brasiliensis) e as seringueiras (Hevea spp.). Todas estão bastante ameaçadas localmente, mas a mais procurada pela indústria moveleira e pela construção civil é a ucuúba.
Largamente usada em construções provisórias, a ucuúba é usada em arquitetura de interiores, na fabricação de compensados e de embalagens e em canteiros de obra: serve como tapume, contentor de cimento, palco, dentre outras. É uma árvore que atinge 60 metros de altura e, atualmente, consta da lista de espécies em perigo de extinção do IUCN. Mais de 40% das ilhas de Anavilhanas foram saqueadas para retirada dessa madeira.
A proposta de Scabin é mensurar a estrutura etária das espécies, o que vai resultar na identificação das áreas em que as populações dessas espécies estão em processo de regeneração, na localização dos estoques restantes dessas madeiras, na verificação das áreas mais impactadas pelo corte ilegal. A pesquisadora já descobriu que a parte sul do arquipélago é a mais impactada, principalmente nas áreas próximas às comunidades, e que a distribuição natural dessas árvores também influencia toda a cadeira produtiva da extração ilegal de madeira.
Turismo afeta aves migratórias
Também consequência da parceria, um estudo na área de ecologia realizado pela pesquisadora do Inpa, Rebecca Zarza, coordenado pelo pesquisador Renato Cintra e iniciado no ano passado, já indicou que o turismo desordenado nas praias de Anavilhanas pode afetar a reprodução e o sucesso de vida dos filhotes das aves migratórias. A proposta da equipe gestora do parque é que nas principais praias de reprodução dessas espécies, a visitação seja voltada apenas para o avistamento das aves, sem que haja o desembarque dos visitantes.
A 40 quilômetro de Manuas, Anavilhanas tem mais de 140 mil ha em terra firme e mais 210 mil ha de arquipélago. Além da extração ilegal de madeira, a região sofre com a caça predatória, principalmente de mamíferos, aves e quelônios. Além de Manaus, a unidade está bem próxima do município de Novo Airão, com cerca de 15 mil habitantes, e de mais 64 comunidades ribeirinhas.
Em 1981, o governo federal criou a Estação Ecológica de Anavilhanas com mais de 350 mil hectares. O rio Negro serpenteia entre as mais de quatrocentas ilhas do arquipélago e se ramifica em centenas de igarapés, canais e 600 lagos. Em 2008, a estação ecológica foi recategorizada para parque nacional por causa do potencial turístico que apresenta e está em processo de elaboração de seu Plano Emergencial de Uso Público, que será também analisado pelo Comitê Técnico-Científico, para unir, de forma exemplar, a pesquisa com a gestão do parque nacional.
(Por Carla Lisboa, Ascom ICMBio, 29/06/2009)