O novo marco regulário do petróleo, específico para o pré-sal, que está sendo desenhado por uma comissão interministerial, poderá trazer uma série de inconstitucionalidades, o que preocupa advogados especializados ouvidos pelo Valor. A impressão generalizada é que o governo está soltando o que muitos consideram "balões de ensaio" para testar a aceitação de algumas ideias que não têm consenso entre os próprios membros da comissão.
A preocupação das empresas pode ser medida pela grande quantidade de pareceres encomendados aos escritórios de advocacia pedindo análises dos prós e contras de cada modelo. Entre várias questões polêmicas, haveria pelo menos uma inconstitucionalidade: a intenção de escolher empresas sem licitação, sob o argumento de que, assim, a Petrobras poderá ser beneficiada, não precisando disputar áreas e podendo ser escolhida diretamente como parceira da empresa que será criada, a Petrosal.
Outras questões controversas dizem respeito ao pagamento para a estatal da sua parte no óleo produzido (o regime será de partilha), em produto e não em dinheiro, e a regulação/fiscalização da nova empresa, que poderá ser mais ligada ao Ministério de Minas e Energia do que à Agência Nacional de Petróleo (ANP), o órgão que hoje regula e fiscaliza o setor. "Os princípios constitucionais da igualdade e isonomia e da livre concorrência seriam desrespeitados", afirma o advogado Luiz Antonio Lemos, sócio de petróleo e gás do escritório TozziniFreire Advogados. Ele defende o modelo norueguês, que tem a Petoro, uma estatal "pura", funcionando ao lado da StatoilHydro, empresa de economia mista, como a Petrobras.
Sonia Agel, ex-procuradora-geral da ANP, tem a mesma opinião. "A possibilidade de a estatal contratar empresas operadoras sem licitação fere artigo da Constituição. No entanto, esse dispositivo ressalva os casos especificados na legislação. Caso a legislação admita a contratação com dispensa ou inexigibilidade, essa deverá atender ao principio da isonomia, não podendo ser usado como mecanismo de favorecimento à Petrobras."
Outro especialista ouvido pelo Valor vê espaço legal para que apenas a Petrobras seja beneficiada, lembrando que a lei 8.666/1993 (Lei das Licitações) prevê, no artigo 24, a possibilidade de dispensa para contratos com empresas controladas pela União. Mesmo assim, ele frisa que, se o objetivo for a dispensa de licitação apenas para a Petrobras, é preciso que se coloque isso explicitamente no texto da lei. "Questões dessa natureza não podem ser apenas fruto da vontade subjetiva do dirigente de hoje. É preciso uma posição institucional", diz o especialista .
A pouca transparência no processo de escolha de qualquer empresa que venha a ser sócia da nova estatal é um problema que não pode ser ignorado. A contabilidade dos custos de produção precisa ser muito bem definida, sob pena de prejuízos graves à estatal. O risco não é irrelevante, porque toda despesa é contabilizada pelo operador para ser deduzida do valor a ser entregue para a Petrosal (o chamado "cost oil"), tendo que ser aprovada antes pela estatal. E aí que está o risco de serem aprovados custos duvidosos.
"Os atuais critérios de julgamento são objetivos. Existe o bônus de assinatura, o conteúdo local e o programa exploratório, que são aplicáveis em processo licitatório. Por serem objetivos, são melhores para evitar a corrupção e por estarem em conformidade com os princípios constitucionais que norteiam a administração pública, como moralidade, isonomia e impessoalidade, os quais afastam a escolha direcionada e subjetiva", diz Lemos, do TozziniFreire. Para evitar manobras, um experiente advogado sugere que poderia ser estabelecido um percentual fixo da produção a ser partilhado com a União, independentemente dos custos da operadora e dos preços futuros do petróleo. Mas um executivo do setor acha difícil que empresas assumam esse tipo de risco, já que um dos benefícios da partilha é que os riscos são divididos com o próprio Estado.
Alexandre Chequer, sócio do escritório Thompson & Knight , acha que se criou uma ilusão no Brasil de que a partilha é melhor que o sistema de concessão. "A diferença entre a partilha e a concessão é que uma é paga em dinheiro e a outra em óleo. Mas antes do pagamento, todos os custos precisam ser deduzidos e a estatal tem que aprovar todos os contratos", explica Chequer. Ele vê a necessidade de criação de um sistema contábil para regular a partilha de produção. "No modelo de concessão, a empresa concessionária contrata quem ela quiser, mas dentro do 'cost oil', a Petrosal é que terá que aprovar todos os contratos", diz Chequer.
Outro advogado, que pede para não ser identificado, observa que também não está claro como se dará a entrega do petróleo em barris para a União, como pagamento da partilha. Ele pergunta quem vai armazenar, transportar e vender esses milhares e até milhões de barris. Também é relevante saber se a Petrosal vai contratar a Petrobras sem licitação para refinar o petróleo que quiser vender sob a forma de combustíveis, se interessa à Petrobras ser prestadora de serviços de venda desse petróleo e se ela será remunerada por isso.
Um executivo do setor que trabalhou para uma multinacional acha que não haveria problema, já que a Petrobras poderia aumentar ainda mais sua escala se prestar esse serviço mediante remuneração. Sonia Agel, hoje sócia do escritório Schmidt, Valois, Miranda, Ferreira & Agel, vê "uma sinalização grave para a volta do monopólio da Petrobras". Até o momento, só se conhece a posição oficial da Petrobras a esse respeito, apenas comentários do presidente da estatal, José Sergio Gabrielli, que costuma defender o modelo de partilha por considerar o pré-sal um "bilhete premiado".
Sonia acha que a convivência de dois regimes distintos e submetidos a autoridades diferentes poderá ferir o princípio de isonomia e ainda gerar conflitos, como por exemplo, no caso de unitização de blocos já concedidos e que contenham reservatórios que se estendem para áreas não licitadas. Ela também acha que uma autarquia nos moldes da ANP tem mais independência do que uma estatal, estando menos sujeita a interferências político-partidárias. Outro ponto mencionado pela advogada é a possibilidade, já sugerida pelo governo, de mudar as regras de distribuição de royalties de áreas já licitadas e em operação. "Seria uma violação gritante ao ato jurídico perfeito e significa para qualquer investidor um desestímulo e descrédito ao país. Imagine você, se for para aumentar a participação especial dos campos licitados com contratos já em produção, com efeito retroativo, o que isso significaria?", questiona.
Lemos se diz preocupado com o uso, no país, do que chama de paradigmas do modelo norueguês. "Nem tudo lá é melhor. Nosso regime de licitação é muito mais transparente. A modalidade de licitação na Noruega é baseada num sistema de outorga discricionário. O governo norueguês, com base nas características técnicas e de porte econômico dos licitantes, pode compor os grupos de licenciadas e realizar alterações nas composições de grupos de ofertantes que apresentarem propostas em conjunto. Não há critério objetivo de julgamento, como maior bônus."
(Por Cláudia Schüffner, Valor Econômico, 25/06/2009)