João Paulo Capobianco foi secretário executivo do Ministério do Meio Ambiente durante a gestão de Marina Silva e ministro interino do mesmo órgão. Durante esse período em que esteve junto ao governo defendendo a agenda ambiental, enfrentou grandes dificuldades, principalmente da bancada mais retrógrada em relação à questão do meio ambiente do país. Nesta entrevista, concedida por telefone à IHU On-Line, o biólogo e ambientalista analisou a questão da MP 452, falou sobre a MP 458 e fez críticas à forma como esses dois temas e outros relativos à legislação ambiental brasileira estão sendo conduzidos.
Ele relata uma série de modificações que a lei ambiental vem sofrendo e o quanto isso prejudica não apenas a questão ecológica no país, mas principalmente a vida da população brasileira. “Temos a convicção que fizemos muitas coisas importantes, inclusive estruturantes, mas, quanto mais se trabalha no Ministério do Meio Ambiente, mais se cria encrenca, porque acaba gerando atritos com outros setores. Nunca se consegue, por exemplo, licenciar uma obra importante sem desagradar a todos”, disse.
IHUnisinos – O que significa, para o senhor, a MP 458?
João Paulo Capobianco – A MP 458 trata de um assunto da maior importância, que é a regularização fundiária na Amazônia, um tema fundamental. Desde o início de 2003, quando foi formulado o Plano de Prevenção e Controle do Desmatamento do governo federal, a regularização fundiária sempre foi entendida como uma das emergências na Amazônia. Ou seja, a necessidade de organizar a ocupação que existe na região, de forma a dar o título àqueles que têm direito real de obtê-lo, dos que estão na região há muito tempo, produzindo, com suas famílias, e vivendo da atividade agrícola ou pecuária, além de possuírem um histórico de ocupação mansa e pacífica. Essas pessoas chegaram na região, se estabeleceram, e estão produzindo sem expulsar comunidades ou agir com violência contra grupos que já estivessem na região antes.
Entretanto, desde o início desta discussão, sempre foi considerado fundamental separar esses posseiros que têm efetivo direito de receber o título daqueles que não o são, os grileiros – pessoas que foram para a região para especular, ocupar terra pública para forjar a regularização, obter título e, por fim, revender essas áreas. Há uma enorme quantidade de pessoas e empresas que operam desta maneira. Infelizmente, a Medida Provisória, tal qual foi formulada, e com as graves modificações introduzidas pela Câmara dos Deputados e referendadas pelo Senado, praticamente faz o inverso. Ela dá o título ao pequeno, mas também ao grileiro. E vai além: dá o título a empresas, a pessoas que têm mais de uma propriedade. Da forma como ela está redigida agora, premia a grilagem, o banditismo e a violência contra as comunidades locais.
A Medida Provisória é do presidente. Portanto, não tenho dúvida alguma de que Lula irá sancioná-la. Nos opusemos, desde a origem, à Medida Provisória, pois entendemos que ela é equivocada. Não se pode fazer esse processo de regularização fundiária desta forma. Ocorre que, para agradar a situação, ela foi modificada no Congresso. Então, resta saber se o presidente irá vetar, pelo menos, as gravíssimas modificações feitas. Elas tornaram a Medida Provisória inadequada para enfrentar o problema. A expectativa é de que o presidente possa vetar essas modificações, mas não tenho dúvida que a MP original deverá ser sancionada.
O senhor também esteve envolvido na MP 452. Como o senhor vê a forma como ela está sendo conduzida neste momento?
Capobianco – Eu também trabalhei com essa medida provisória. A MP 452, que tratava originalmente sobre o Fundo Soberano e foi ao Congresso com esse objetivo, acabou incluindo uma emenda absolutamente absurda que flexibilizava o licenciamento ambiental para obras em rodovias federais já existentes. Na verdade, essa medida tornava simplificado o sistema de licenciamento ambiental para obras que incluíam asfaltamento e duplicação de rodoviais federais. Ela incluía também um dispositivo absolutamente inédito e completamente inaceitável do que a gente chama de licenciamento por decurso de prazo. Ou seja, ela estabelecia um prazo que, se não fosse cumprido, permitiria o licenciamento da obra. Isso é totalmente absurdo, porque não se pode, por um problema de avaliação de impacto ou por complicações nesses processos, realizar o empreendimento independentemente dos custos ambientais que poderão ocorrer. Isso jamais poderia ter sido proposto, porque é antiético. Do ponto de vista ambiental, a medida era completamente equívocada, mas acabou não prevalecendo porque o prazo para sua análise no Congresso expirou e, portanto, ela foi anulada.
Onde, hoje, a legislação ambiental do país precisa ser aprimorada?
Capobianco – Nesse aspecto, existe um ponto que precisa ser trabalhado e discutido. Temos visto um revés realmente muito intenso na legislação ambiental brasileira. No ano passado, houve a modificação do decreto de proteção de cavernas, o que praticamente desguarneceu quase completamente nossas cavernas. Elas são o nosso patrimônio espeleológico, um dos patrimônios mais importantes do mundo. Possuíam uma legislação bastante rigorosa, mas que ficou muito fragilizada. Depois, nós tivemos uma modificação de comportamento que permitiu a prorrogação do uso do diesel com alta concentração de enxofre no Brasil, contrariando a resolução do Conama. Ao mesmo tempo, houve modificações no decreto que regulamentou a lei de crimes ambientais. Tivemos praticamente o fim, do ponto de vista objetivo e real, da compensação ambiental.
Existe essa Medida Provisória da Amazônia, que é terrível. E ainda há uma Medida Provisória que foi inviabilizada e deixou de ter efeito graças a uma operação fortíssima do Congresso, que flexibilizava a construção de rodovias no Brasil inteiro, mas com especial interesse na Amazônia. Ao mesmo tempo, passamos pela modificação, por medida provisória, da legislação que define as Pequenas Centrais Hidrelétricas, aumentando tremendamente o tipo de obra que pode ser considerado uma PCH, com licenciamento simplificado. Essas PCHs, que estão se espalhando pelo Brasil, têm efeito sinérgico, porque são várias no mesmo rio e afluentes. O efeito pode ser ainda pior do que a construção de uma grande hidrelétrica.
Tudo isso está sendo feito. De fato, há uma perda de qualidade. Eu diria que a legislação ambiental não é perfeita, e deve ser aprimorada. Aliás, esse é um esforço que vem sendo feito. Nós mesmos apresentamos várias modificações, como a criação da lei de gestão de florestas públicas, que permitiu uma nova forma de atividade na Amazônia sem transferência de propriedade e terra. Fizemos modificações na lei do sistema nacional de unidades de conservação, estabelecendo uma chamada interdição provisória, a fim de evitar que, durante os estudos, sejam cometidos ou processadas atividades que degradem a área. Aplicamos várias medidas para aprimorar a legislação.
Outras não conseguimos fazer, como no Código Florestal, que precisa de um aprimoramento. Isso não foi possível fazer, na ocasião, por causa da correlação de forças no Congresso, muito desfavorável à questão ambiental. Sempre que se coloca um assunto desses para discussão, grupos no Congresso aproveitam para modificar outros dispositivos, enfraquecendo a legislação. Vejo que há ainda necessidade de aprimoramento em vários aspectos da legislação. No entanto, o ambiente político e a correlação de forças, tanto no Congresso quanto no Palácio do Planalto, não permitem, em minha opinião, que se faça esse processo de aprimoramento sem correr o risco de ter um retrocesso. Essa é a situação que vivemos no momento.
É possível, diante desse cenário atual, construir um projeto ambiental em conjunto com o setor econômico brasileiro?
Capobianco – Com certeza, é possível construir. Possuímos setores da área econômica altamente preocupados. O problema é que temos setores retrógrados. Lamentavelmente, se formos analisar a composição do Congresso Nacional, da Câmara e do Senado, veremos que o setor com maior número é formado por pessoas que são dessa ala mais atrasada do Brasil. Se você tiver disposição para assistir pronunciamentos transmitidos pela TV Câmara e TV Senado, quando está em voga a questão ambiental, ficará completamente estarrecido. Eles têm uma visão equivocada, que nega o agravamento do quadro ambiental, insistindo na tecla de que as mudanças climáticas não existem e foram inventadas pelos países ricos para prejudicar os países pobres. Mais lamentável ainda é quando verificamos que essas medidas provisórias ganham apelidos como este: medida provisória da grilagem.
Os deputados deveriam dar mais controle público para esta medida provisória, mas o que eles fizeram foi o contrário: pioraram a MP e aprovaram com unanimidade na Câmara. No Senado, houve uma oposição mais forte liderada pela Marina Silva. Eu diria que temos lideranças empresariais e políticas altamente esclarecidas, com uma visão moderna da questão ambiental no Brasil e no mundo, que sabem da necessidade de avançar numa agenda ambiental e social adequada, capazes de dialogar com a crise planetária resultante das mudanças climáticas. Porém, elas estão pouco representadas e, no fim das contas, quem faz as leis é quem está no Congresso e no Palácio do Planalto, onde impera uma visão retrógrada, arcaica e atrasada em relação à questão ambiental.
Carlos Minc rebateu algumas críticas suas, dizendo que o senhor não conseguiu aprovar nenhum decreto sobre a Mata Atlântica. Quais foram as principais dificuldades que o senhor encontrou quando foi secretário executivo do Ministério do Meio Ambiente?
Capobianco – As dificuldades de operar na agenda ambiental, estando no Ministério do Meio Ambiente, são enormes, porque a questão ambiental é polêmica por natureza, à medida que interfere em várias áreas de atividade econômica. Quer fazer uma estrada? É preciso passar pelo Ministério do Meio Ambiente e pelo Ibama. Quer fazer hidrelétrica? É necessário passar também. Quer licenciar uma atividade minerária ou planejar proteção da biodiversidade? Quem faz é o Ministério. Portanto, o Ministério vive esbarrando, digamos assim, em todos os setores. Sempre que o Ministério do Meio Ambiente atua, e posso dizer que ele foi muito atuante no período da Marina Silva, é considerado uma questão importante. Temos a convicção de que fizemos muitas coisas importantes, inclusive estruturantes.
No entanto, quanto mais se trabalha no Ministério do Meio Ambiente, mais se cria encrenca, porque acaba gerando atritos com outros setores. Nunca se consegue, por exemplo, licenciar uma obra importante sem desagradar a todos. Isso é algo que sempre digo e que parece uma contradição. É preciso verificar se algum setor da sociedade está plenamente satisfeito para concluir se um licenciamento ambiental foi bom ou não. Se um setor sair plenamente satisfeito, o licenciamento não foi bom, principalmente se esse setor é empreendedor. A questão ambiental exige uma negociação de diferentes interesses legítimos, nos quais se busca aumentar os benefícios de um empreendimento e reduzir os impactos dele. Isso é o que orienta o processo de licenciamento na área ambiental, ou seja, sempre existe conflito.
Agora, quando se quer avançar na agenda ambiental, se encontra resistência em grupos organizados, que se sentem ameaçados pela proposta e têm interesses feridos. No caso específico do decreto da Mata Atlântica, todo o processo da aprovação da Lei foi conduzido por nós. Só para lembrar aos leitores, a Lei da Mata Atlântica foi apresentada pelo Deputado Marcio Feldman em 1992. Ela tramitou, sem aprovação, dentro de gavetas, por pressão, até 2002, no final do governo FHC. De 2003, quando assumimos, até 2006, conseguimos aprovar nas comissões, na Câmara, no Senado e obter a sanção do presidente. Dizer que a agenda da Mata Atlântica não foi viabilizada nesse período não é verdade, porque aprovar a lei foi um esforço enorme e nem no governo do PSDB, do qual o deputado Feldman era membro, a lei foi aprovada. E nós trabalhamos muito para que ela fosse aprovada e conseguimos num tempo relativamente curto, considerando o tempo que a lei tramitava.
Na sequência, nós iniciamos a elaboração do decreto regulamentador da lei. Esse decreto foi trabalhado durante um ano e meio, com um processo de negociação intenso dentro do governo com setores que têm interesse nessa agenda. Essa questão implica em vários interesses divergentes. Isso porque nós construímos o decreto, fizemos vários entendimentos, colocamos à consulta pública, ajustamos e, quando o Ministro Minc assumiu o ministério, o decreto já estava no Palácio do Planalto. Eu, como ministro interino, encaminhei o decreto para a provação do presidente. Então, o que aconteceu de fato foi que o Ministro Minc assumiu com o decreto pronto e fez um ajuste ou outro, que, na minha opinião, não foram muito positivos, e o decreto foi aprovado. Não se trata de dizer que no nosso tempo coisas importantes não foram feitas. Muitas das coisas foram implementadas pelo Ministro Minc, o que é um mérito dele. Ao contrário de outros que querem modificar toda a agenda ignorando as questões que estavam em andamento, ele deu sequência à gestão da Marina Silva. No governo anterior a nós, tivemos pessoas que construíram trabalhos importantes na área ambiental e algumas coisas elas não puderam concluir em função do time, porque o governo acaba, e nós demos continuidade ao trabalho.
(IHUnisinos, 20/06/2009)