O governo Lula optou pelo agronegócio em detrimento da reforma agrária. A avaliação é de Charles Trocate, da coordenação nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), que acredita que a política de distribuição de terra vive uma encruzilhada no Brasil. “Eles fizeram uma opção pela ampliação do capital na agricultura, querendo extrair uma nova renda da terra, e impedindo que se crie um ambiente favorável para a existência dos movimentos”, denuncia, em entrevista à Caros Amigos.
Trocate afirma que os primeiros quatro anos do governo Lula foram medíocres: “Houve uma briga de estatísticas, mas, no final, eles não assentaram mais do que 65 mil famílias”. No segundo mandato, para justificar os parcos números, priorizou-se o discurso de se fazer a reforma agrária de qualidade, ou seja, com melhores condições nos assentamentos. No entanto, a realidade é outra. “Não se enfrenta o latifúndio e nem se tem dado a infra-estrutura fundamental, essencial para os assentamentos que já existem”, lamenta o dirigente do MST.
No Pará, estado onde vive, a situação é uma das piores do Brasil. Nos seis anos do governo Lula, nenhuma área ocupada pelo movimento foi desapropriada. Ao mesmo tempo, a organização denuncia um processo de reconcentração fundiária no estado, encabeçado pelo banqueiro Daniel Dantas, dono do Opportunity, que nos últimos anos comprou 52 fazendas em 11 municípios do estado. Entre elas, a fazenda Espírito Santo, ocupada pelos sem-terra, que alegam ser área pública, comprada de forma ilegal. Em abril, o local foi palco, segundo o MST, de uma tentativa de massacre, pintado como “confronto” pela grande mídia. “Confronto” que deixou oito feridos: um segurança privado e sete camponeses.
Caros Amigos - Como está a situação da reforma agrária no Pará hoje?
Charles Trocate - Como em todo o país, a reforma agrária vive um impasse extraordinário, porque o Estado possui vários mecanismos para fazê-la, como também possui vários mecanismos para negá-la. Dependendo da atuação dos governos, mais progressista ao tema ou mais conservador, acaba-se criando encruzilhadas. Então, na prática, no Brasil inteiro, a reforma agrária vive uma encruzilhada. A reforma agrária foi derrotada ideologicamente no governo Lula porque eles fizeram uma opção pelo agronegócio, portanto, pela ampliação do capital na agricultura, querendo extrair uma nova renda da terra, e impedindo que se crie um ambiente favorável para a existência dos movimentos. Nós estamos enfrentando muitas dificuldades nessa conjuntura. Lá no Pará, a questão central é a terra pública. Foram se estabelecendo latifúndios de toda e qualquer natureza, com documentos irregulares atestados por todos os cartórios. E o judiciário não está disposto a rever esses títulos, que são fraudulentos e de origem duvidosa.
Além disso, há uma disputa pela posse da terra, porque o modelo de desenvolvimento do Pará tem cinco grandes frentes. Uma é a pecuária extensiva: temos aproximadamente 20 milhões de cabeças de gado e sete milhões de habitantes: sete vezes mais gado do que gente. A segunda é a frente madeireira, que existe há 20, 30 anos no sul do Pará, e que está se deslocando para o oeste do Estado. Há a frente mineral. O sul e o sudeste do Pará tem aproximadamente 17 mil títulos minerais, que variam de 50 a 10 mil hectares, todos em posse da Companhia Vale do Rio Doce, ou de empresas associadas a ela. Então, há uma guerra de monopólio do título minerário e da extração minerária. É uma disputa acirradíssima do subsolo. A outra frente é a da soja, que também atua no oeste paraense, transformando áreas de florestas nativas em campos de soja, com pesadas perdas para a sociedade local, para o bioma local e para o bioma amazônico.
E a última frente está montada no modelo de desenvolvimento econômico da região, que é a apropriação indevida da biodiversidade, com pesquisas de laboratórios de empresas transnacionais que atuam na região e se apropriam dos conhecimentos naturais e da essência farmacêutica da região sem que isso tenha um controle. Todas essas partes convergem para um modelo, o uso do território para a reprodução do capital e da sua taxa de lucro. Isso provoca uma desterritorialização das comunidades ribeirinhas, quilombolas e dos indígenas. Sem território, estes não se reproduzem socialmente. Aí está a natureza do conflito.
Quem são os grupos que encabeçam essas frentes?
Trocate - Há uma associação de pelo menos três grupos distintos. Primeiro, os latifundiários de origem paulista e sulista que nos últimos 30 anos, pela relação com o Estado, conseguiram obter títulos fraudulentos dos cartórios, e que nos impõe esse impasse hoje. O segundo são os empresários regionais que encabeçam a siderurgia, que produz ferro-gusa a partir do uso da floresta e do ferro extraído da Companhia Vale do Rio Doce. E a terceira é o grande capital, baseado em mega-empreendimentos da Vale, da Alumínio Alunorte e da Alcoa. Eles representam o modelo hegemônico e vão hegemonizando tudo e todos, a sociedade e os governos, para obter juridicamente o favorecimento para implementar esses mega-empreendimentos.
Houve uma piora da concentração fundiária nos últimos anos?
Trocate - Nos últimos dez anos houve uma reconcentração fundiária na região, e isso é medido em função do crescimento da pecuária. De um lado, há busca de novas terras e, portanto, de novos desmatamentos. É assim que se amplia o número de fazendas produtoras de gado. E, se a reforma agrária é marginal, os camponeses são marginais dentro desse processo. Assim, estes vão perdendo suas terras para as grandes fazendas, para o grande projeto de criação de gado. Ou então, para as florestas industriais de eucalipto, que eles chamam de reflorestamento, mas elas não recompõem o ecossistema e a biodiversidade. Muitos trabalhadores tem perdido suas terras para esses grandes espaços.
(Por Tatiana Merlino, Caros Amigos / Quaradouro / Fórum Carajás, 15/06/2009)