O rebanho não precisa ser cortado: ainda se torna legal, mais rentável e agrega valor. Não parece um final feliz?", escreve Roberto Smeraldi, jornalista, diretor da Oscip Amigos da Terra - Amazônia Brasileira, em artigo publicado no jornal Folha de S. Paulo,19-06-2009. Segundo ele, um primeiro passo é "reduzir a pegada espacial da atividade, algo perfeitamente possível: os 71 milhões de cabeças de gado, que hoje ocupam 74 milhões de hectares de pastagem, podem ser abrigados em 25 milhões de hectares, ainda com vantagens econômicas. Isso permite recuperar a reserva legal das unidades produtivas existentes e, assim, tirá-las da ilegalidade". Para Smeraldi, "o rebanho não precisa ser cortado: ainda se torna legal, mais rentável e agrega valor. Nos 50 milhões de hectares a recuperar, geram-se bilionários créditos de carbono e muitos empregos. Não parece um final feliz".
O Brasil, de repente, se dá conta dos passivos do avanço da pecuária - com seu explosivo crescimento, na Amazônia, a partir de 2004. Justiça, sociedade civil e supermercados reagem, e cada um anuncia medidas em sua respectiva esfera: indenizações bilionárias, denúncia das ligações com grifes internacionais, sustação de compras. O Banco Mundial resolve pedir de volta o dinheiro que havia concedido em 2006, afastando-se de riscos financeiros e reputacionais. E ainda há bastante coisa para vir. Saudável que isso esteja em pauta, mas, passada a atenção midiática - necessariamente passageira -, pode se voltar à rotina sem alternativas.
A Justiça é lenta, e a capacidade de cobrança da sociedade civil ao longo do tempo, obviamente limitada, ainda mais quando longe dos holofotes. Há caminhos para aproveitarmos essa crise não apenas para superar o problema da ilegalidade mas também para criar as condições para que a atividade se torne mais sustentável? Eu acho que sim, mas as condições não são triviais. Para começar, a história ensina que, sem reconhecer os erros, é difícil superá-los: a negação das evidências não ajuda a trocar de página. Também temos de entender que a tecnologia avançada é, nesse caso, necessária, mas, sozinha, não resolve. Finalmente, temos de garantir durabilidade e massa crítica para as soluções. Com tais pressupostos, podemos enfrentar três desafios.
O primeiro é reduzir a pegada espacial da atividade, algo perfeitamente possível: os 71 milhões de cabeças de gado, que hoje ocupam 74 milhões de hectares de pastagem, podem ser abrigados em 25 milhões de hectares, ainda com vantagens econômicas. Isso permite recuperar a reserva legal das unidades produtivas existentes e, assim, tirá-las da ilegalidade. Para que isso aconteça, é preciso redirecionar o expressivo crédito subsidiado destinado a toda a cadeia. Nem precisa de dinheiro adicional, mas apenas usar o que já gastamos de forma exatamente oposta ao que se faz hoje: em vez que promover a expansão, promover a produtividade.
O segundo desafio é estabelecer políticas de compra confiáveis: aquelas baseadas em listas negras se revelaram um bumerangue para os que as adotaram. Logo que o Greenpeace expôs as ilegalidades dos fornecedores que não faziam parte das listas dos multados ou embargados, caiu a ficha das empresas sobre o quanto esse mecanismo pode ser traiçoeiro. Muitos dos que estão fora das listas estão entre os mais ilegais: eles já não tinham floresta e, portanto, não eram objeto dos flagrantes de derrubada que os levariam para as listas.
Precisamos, assim, de listas positivas de fornecedores, algo possível só com um sistema de certificação que, inclusive, garanta também contra práticas como trabalho escravo, na qual a pecuária amazônica é recordista. E isso pode ser adotado logo: a Iniciativa Brasileira para Certificação da Atividade Agropecuária chegou à reta final após três anos de negociação. O terceiro desafio é evitar novos investimentos para a expansão da atividade na região. Parece óbvio, mas é algo que só pode ser imposto pela indústria financeira e que precisa de um compromisso claro por sua parte.
Tudo isso poderá embasar os futuros termos de ajustamento de conduta a serem assinados com o Ministério Público pelos diversos atores da cadeia. Mas os prazos para sua implementação são necessariamente longos, de pelo menos uma década. Eis que precisa de um avalizador com capacidade financeira, um pé nos frigoríficos e outro na fazenda: trata-se do BNDES. Coincidentemente, é o mesmo que também financia grande parte da atividade pecuária em si e, portanto, pode amarrar o crédito aos critérios das políticas de compra da indústria, da qual é sócio. Esse avalizador não aparenta nenhum apetite para se envolver na mudança. Entretanto, acabou se tornando corresponsável judicialmente com os frigoríficos e, portanto, à diferença do Banco Mundial, não tem como se despedir. O BNDES pode viabilizar e garantir a mudança poupando o pagamento de enormes indenizações ao setor no qual se engajou com certa desenvoltura e a si mesmo.
O rebanho não precisa ser cortado: ainda se torna legal, mais rentável e agrega valor. Nos 50 milhões de hectares a recuperar, geram-se bilionários créditos de carbono e muitos empregos. Não parece um final feliz?
(Por Roberto Smeraldi*, Folha de S. Paulo / IHUnisinos, 19/06/2009)
*Diretor da Oscip Amigos da Terra - Amazônia Brasileira