Decretos que regulamentavam exploração da Amazônia levaram a conflito com indígenas, que pediam para ser consultados. Depois de adotar retórica dura em que acusou índios de "selvagens", presidente Alan García recua e afirma que "quem ganha é o Peru"
O Congresso unicameral do Peru aprovou ontem a revogação de dois decretos do presidente Alan García sobre a exploração da Amazônia. A anulação era uma exigência do movimento indígena da selva peruana, que só foi aceita por Lima depois de mais de dois meses de protestos e um confronto violento que deixou ao menos 34 mortos no norte do país no último dia 5.
A cidade de Bágua Grande, na Amazônia peruana, um dos palcos do conflito do começo do mês, ainda não voltou à normalidade. Com a região ainda sob toque de recolher, comércios e casas do município acompanharam pela TV o debate no Parlamento que determinou o placar de 72 a 12 a favor da revogação. Lamentavam que a decisão só fosse tomada 13 dias depois do confronto. O governo aceitara revogar os decretos 1.090, ou Lei Florestal e da Fauna Silvestre, e o 1.064, que cria novo regime jurídico para atividades agrícolas, na segunda-feira (15/06), após reunião com indígenas na selva central. Anteontem à noite, o presidente conservador Alan García , em pronunciamento em cadeia de rádio e TV, admitiu que os decretos foram feitos sem ouvir as comunidades amazônicas e pregou a reconciliação do país. Desgastado pela maior crise de seu governo, arrematou: "Não há derrotados nem vencedores. Ganha o Peru".
A ausência de consulta para decretos sobre a Amazônia era a principal reclamação do movimento indígena amazônico há um ano e tomou forma de protestos nacionais desde abril. Eles apontavam descumprimento da convenção 169 da OIT (Organização Internacional do Trabalho), adotada pelo Peru, que prevê a consulta em caso de leis que afetem as populações originárias. O pacote de dez decretos sobre a Amazônia está entre mais de cem baixados por García em maio de 2008, quando foi autorizado pelo Congresso a legislar por decreto para adaptar leis do país ao Tratado de Livre Comércio (TLC) com os EUA. Desde então, o presidente e ministros vinham repetindo que a nova legislação amazônica era essencial para o TLC, embora críticos do governo apontassem que o pacote legal ia muito além do exigido por Washington.
Após o conflito violento no norte, seguido da dura e criticada retórica de García, que repetia que os "selvagens" indígenas queriam impedir o desenvolvimento do Peru, as declarações foram suavizadas, e o Ministério do Comercio Exterior divulgou que "os EUA apoiavam uma solução de diálogo" para o conflito. "O único que se falava era que havia preocupação com madeireiras ilegais e com trabalho forçado. Nunca se explicou bem nos decretos quais eram as exigências [dos EUA] e que partes eram interesse próprio do governo", disse ao jornal "El Comércio" Alfredo Ferrero, que era Ministro de Comércio e Turismo do governo Alejandro Toledo (2001-2006), quando foi assinado o acordo.
Segundo indígenas, ativistas e a oposição, os decretos anulados ameaçavam os recursos naturais e as terras indígenas. Um dos pontos mais criticados era o trecho que permitia ao governo mudar o zoneamento amazônico, de área de preservação para de uso agrícola, argumentando "interesse nacional". Agora, o governo tem pela frente delicada agenda com o movimento indígena amazônico após uma coordenação nacional inédita em anos recentes. Além dos decretos, as lideranças rejeitam as concessões a petroleiras e mineradoras. A mobilização também despertou demandas dos indígenas da cordilheira dos Andes.
(Folha de S. Paulo, 19/06/2009)