O Termo de Acordo assinado pelo Ministro do Meio Ambiente, Carlos Minc, pelo Governador de Rondônia, Ivo Cassol e pelo Presidente do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBIO), Rômulo Fernandes Mello, em 02 de junho de 2009, é fruto de uma proposta do Governador de Rondônia, aceita pelo Governo Federal com aval do Presidente Lula, para viabilizar a concessão da Licença de Instalação da UHE de Jirau, por sua vez caracterizada por sérias violações da legislação ambiental brasileira. Os comentários que seguem se limitam à análise das alterações na Floresta Nacional Bom Futuro e UCs estaduais previstas no referido Termo de Acordo, sem, contudo, abordar outras irregularidades no processo de licenciamento da usina de Jirau.
Inicialmente, cabe alertar que esse Termo de Acordo demonstra os efeitos nefastos de uma recorrente lacuna na legislação do Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC) - Lei 9.985/2000 - sobre critérios para justificar a alteração ou supressão de unidades de conservação e procedimentos afins. O arcabouço legal do SNUC deveria contemplar critérios que blindassem contra investidas privadas de redução e supressão de UCs com objetivos escusos e pouco transparentes. Seria necessário considerar previamente os impactos negativos decorrentes dessas investidas (inclusive riscos de criação de um precedente para estimular novas invasões de áreas protegidas) e assegurar mecanismos efetivos de compensação e fortalecimento da gestão de áreas potencialmente afetadas. As inúmeras tentativas que resultaram na redução e supressão de UCs estaduais em Rondônia, desde meados dos anos 90, assim como outras mais recentes para reduzir a Reserva Extrativista (RESEX) Rio Ouro Preto e a FLONA Bom Futuro, por membros da bancada rondoniense no Congresso Nacional, são exemplos dos riscos dessa lacuna na atual legislação.
Na análise das tentativas de impedir a completa destruição da FLONA Bom Futuro, é necessário questionar os motivos do não cumprimento, pelo INCRA, IBAMA e Governo de Rondônia, do Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) de maio de 2005, que resultou da Ação Civil Pública movida pelo Ministério Público Federal (MPF) e Ministério Público Estadual de Rondônia (MPE) em maio de 2004, objeto de decisão judicial em agosto de 2004. Foram desconsideradas, nesse novo acordo, as determinações do TAC para solucionar os conflitos na FLONA, como a retirada de grandes pecuaristas, especuladores e madeireiros ilegais; o reassentamento de clientes da reforma agrária ou a implantação da FLONA com plano de manejo e recuperação de áreas degradadas. Por quê?
Antes de assinar o Termo de Acordo, o Ministro Minc fez declarações contraditórias sobre a estratégia do MMA para a FLONA Bom Futuro dizendo, ora que iria retirar os pecuaristas/grileiros e reassentar as famílias passíveis de serem clientes da reforma agrária, ora que iria retirar apenas o gado dos maiores pecuaristas. Segundo declaração do Governador Ivo Cassol, apos a assinatura do Termo de Acordo “nenhuma cabeça de gado será retirada da FLONA Bom Futuro”. Considerando que já está amplamente comprovada a existência de poderosos interesses (grileiros, madeireiros, especuladores, politico-eleitorais) que operam dentro da FLONA, caberia verificar até que ponto as alterações propostas no Termo de Acordo visam atender aos interesses privados ou ao interesse público.
Na medida em que o padrão atual de ocupação ilegal da área da FLONA Bom Futuro tende a permanecer inalterado, quais são as perspectivas reais de implantação de uma APA Estadual, uma nova Floresta Estadual e nova UC de proteção integral de modo a impedir novos desmatamentos? Tudo indica que a "solução" definida no Termo de Acordo vai permitir a continuidade do desmatamento, da exploração madeireira e de outras atividades que comprometem a integridade dos atributos que justificaram a criação da FLONA, contrariando o artigo 225 da Constituição Federal de 1988.
Nesse sentido, a proposta de transformação de 70 mil hectares da FLONA Bom Futuro em Área de Proteção Ambiental (APA) fere o artigo 225, § 1°, inciso III da Constituição Federal de 1988, que incumbe ao Poder Publico “definir, em todas as Unidades da Federação, espaços territoriais e seus componentes a serem especialmente protegidos, sendo a alteração e supressão permitidas somente através de lei, vedada qualquer utilização que comprometa a integridade dos atributos que justifiquem sua proteção"[2]. A figura de APA (artigo 15, lei do SNUC) permite a titulação de propriedades privadas e a utilização intensiva dos recursos naturais que são incompatíveis com a manutenção da cobertura florestal, requisito fundamental para a criação da FLONA. A história tem demonstrado que a proteção ambiental de APAs tem sido praticamente nula (veja-se, inclusive, o caso da APA do Rio Madeira, ao lado da Hidrelétrica Santo Antônio).
Algumas características do histórico e a situação atual das unidades de conservação "oferecidas" pelo Governador Ivo Cassol, em troca da "liberação" da FLONA Bom Futuro, em particular as Florestas Estaduais de Rendimento Sustentado (FERS) Rio Vermelho "A" e "B", devem ser consideradas:
1. A Floresta Estadual Rio Vermelho “A” (área a ser parcialmente inundada pela usina de Jirau em sua nova localização na Ilha do Padre) foi criada por decreto estadual em 1990 com 38,68 mil hectares. Nunca foi demarcada ou beneficiada com plano de manejo pelo Governo de Rondônia e apenas uma parte foi incorporada à Estação Ecológica Serra dos Três Irmãos.
2. A Floresta Estadual Rio Vermelho “B”, na área de influência, também, da usina de Jirau, na Ilha do Padre, foi criada com 152 mil hectares em 1990, com a previsão de contar com um projeto piloto de manejo florestal no âmbito do PLANAFLORO. Apenas 31,57 mil hectares (21%) foram demarcados em 1995, com recursos do Banco Mundial. Uma parte da área remanescente (18,28 mil hectares) foi eventualmente incluída na Estação Ecológica Mujica Nava em 1996. Grande parte da área dessa floresta estadual foi transformada pela em zonas agropecuárias.[3]
3. O abandono, a supressão e redução das Florestas Estaduais Rio Vermelho A e B - tendência que se repetiu com diversas outras UCs estaduais - foram um reflexo, na tomada de decisões por parte do Executivo e Assembléia Legislativa do Estado de Rondônia, da prevalência de interesses imediatistas de especuladores de terras, pecuaristas, e madeireiros ilegais.
4. As terras públicas onde foram criadas as florestas estaduais do Rio Vermelho pertencem ainda à União e nunca foram repassadas ao Governo de Rondônia. Ou seja, o Governador Ivo Cassol negociou um patrimônio que não pertence ao Estado de Rondônia.
5. As duas Florestas Estaduais (Rio Vermelho A e B) não aparecem na ultima versão do mapa de florestas públicas do Serviço Florestal Brasileiro (SFB) e tampouco em mapa recente do MMA sobre áreas protegidas em Rondônia, o que sugere que o próprio Governo Federal desconhece a existência dessas áreas.
Mesmo que essas florestas existissem como unidades de conservação, de direito e de fato, o que não é o caso, em que medida elas iriam compensar a redução ou supressão da FLONA Bom Futuro? Qual seria o ganho, nessa troca, para a conservação?
Os signatários do Termo de Acordo de 02 de junho de 2009 parecem ignorar outro acordo entre o Ministério de Meio Ambiente (MMA) e o Estado de Rondônia, assinado exatamente cinco anos antes, em 02 de junho de 2004. Trata-se de "Acordo de Cooperação" para "adequação do zoneamento socio-econômico-ecológico de Rondônia", respaldado pela Recomendação N° 03 de 2006 do CONAMA e pelo Decreto Presidencial N° 5875 de 2006 que incluiu como uma das obrigações a de ".... proceder a desintrusão das unidades de conservação estaduais, quando da ocorrência de invasões" (cláusula segunda, item I). Essa e outras obrigações assumidas pelo Governo de Rondônia nunca foram cumpridas.
Os antecedentes de redução, supressão e degradação ambiental das Florestas Estaduais do Rio Vermelho A e B, envolvendo o não cumprimento de acordos entre o Governo de Rondônia e o Governo Federal, foram desconsiderados na elaboração do novo Termo de Acordo (Indecente). A assinatura pelo MMA/ICMBio de um termo de acordo que envolve essas florestas estaduais, comprovadamente irregulares, foi nada mais que um artifício para viabilizar um escambo de ilegalidades do Governador Ivo Cassol e seus aliados no Estado de Rondônia, oportunamente aproveitado na aprovação política da Licença de Instalação para Jirau, contrariando o parecer da equipe técnica do IBAMA.
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Notas
[1] Assessor Técnico da OSCIP Amigos da Terra – Amazônia Brasileira
[2] O texto do Termo de acordo não especifica quais seriam os "atos normativos" ou "instrumentos legais" a serem utilizados para efetuar a desafetação da FLONA Bom Futuro e UCs estaduais. O nosso entendimento é que uma possível tentativa de redução ou supressão por meio de Medida Provisória (e não projeto de lei) seria conflitante com o artigo 225 da CF/88 e o artigo 22, § 7° da Lei do SNUC, que estabelece que “a desafetação ou redução dos limites de uma unidade de conservação só pode ser feita mediante lei específica
[3] Segundo as diretrizes da lei da segunda aproximação do zoneamento, as áreas de zona 2 são indicadas para criação de novas UCs, o que implica que o Governo de Rondônia não reconhecia mais a existência destas áreas protegidas na época. Se tivesse reconhecido, teriam sido classificadas como zona 3, que abrange as diferentes categorias de áreas protegidas (vide Lei Estadual 233/00). As Zonas 1 e 2 são de uso intensivo para fins agropecuários, o que contrasta frontalmente com conceito de área protegida. Cabe observar que a Lei Complementar no. (233 de 03 de junho de 2000) antecedeu a lei do SNUC (Lei No 9.985 de 18 de julho de 2000) em pouco mais de um mês, o que pode dificultar questionamentos baseados no artigo 22, § 7° ( “a desafetação ou redução dos limites de uma unidade de conservação só pode ser feita mediante lei específica”) sobre a admissibilidade de lei estadual de zoneamento para reduzir ou suprimir uma UC, sem lei especifica.
(Por Brent Millikan[1] e Telma Monteiro, telmadmonteiro.blogspot, 14/06/2009)