“Nem todas as previsões que nós temos de aumento de uso de álcool justificam que a cana se torne a principal cultura agrícola do Brasil. Ela vai se tornar uma das principais, mas o alimento ainda é muito mais importante”. O alerta vem de Marcos Buckerigde, biólogo da USP que coordenou pesquisas que mostram que a cana-de-açúcar terá ganhos de produtividade com as mudanças climáticas – aumento de temperatura e de concentração de CO². Por outro lado, alguns estudos começam a apontar que a produção de alimentos poderá cair nas mesmas condições, segundo o cientista.
Segundo Buckeridge, além de ganhar produtividade com o aquecimento global, o plantio da cana não precisará ser transferido para regiões mais frias em um cenário de aumento de três a cinco graus na temperatura e elevação na concentração de CO², previsto para 2050 pelo IPCC. Já outras culturas terão que mudar de lugar, por exemplo para o Paraná, “Mas o gasto vai ser gigantesco”.
“A cana realmente parece que vai agüentar. Além disso, nós estamos trabalhando intensamente na sua genética para criar novas variedades e novas formas que resistam a essas mudanças climáticas”. Essa vantagem da cana poderá intensificar no futuro a corrida já em curso pela expansão do plantio no Brasil, especialmente para produção de biodiesel, e gerar competição com a produção de alimentos.
Produção de biodiesel
O governo brasileiro está entusiasmado com as possibilidades de expansão da produção de biodiesel. Até a Petrobras vai investir na produção de biocombustíveis, incluindo o etanol de cana. O montante estimado é de US$ 2,8 bilhões de dólares nos próximos anos. O anúncio foi feito por Sergio Gabrielli, presidente da Petrobras, durante o Ethanol Summit 2009, evento realizado em São Paulo entre os dias 1 e 3 de junho e que contou com a presença de políticos de alto escalão, como Bill Clinton, Dilma Roussef e José Serra, e de representantes do setor produtivo de diversos países.
“Nosso programa de biodiesel está custando muito subsídio, perto de R$ 1 bilhão (…) O produto sai da agricultura, mas não vai para alimentação, vai para combustíveis. Isso é altamente questionável”, avalia Guilherme Leite da Silva Dias, professor de da Faculdade de Economia e Administração da USP. Ele analisou planilhas do governo e descobriu que a exportação de óleos comestíveis caiu 35% em 2008. “O Brasil está estimulando com subsídios a produção de óleos para biodiesel e caiu a produção de óleos comestíveis. Estamos reduzindo a oferta de alimentos para o mundo”. No Ethanol Summit 2009, Gabrielli também citou um estudo que estima que a produção de etanol no Brasil deve saltar das atuais 23 mil toneladas/ano para 544 mil toneladas/ano em 2020.
Avanço da cana no Brasil
A nova corrida para o plantio da cana já produziu resultados. De 2005 a 2008, 81 novas usinas foram adicionadas ao parque industrial do etanol na região Centro-Sul, segundo a Unica (União da Indústria de Cana-de-açúcar). Para este ano, mesmo com a crise mundial, a consultoria Datagro previu que a produção de cana-de-açúcar deve aumentar 7,6%.
Atualmente, a grande produção canavieira nacional está na região Sudeste (4, 5 milhões de hectares), de acordo com a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab). Também são grandes produtoras as regiões Centro-Oeste (900 mil hectares) e Nordeste (1 milhão de hectares). Já no Norte, a produção de cana é comparativamente pequena (20 mil hectares), mas está avançando. Entre 2007 e 2008, houve um aumento de 23,5% da área ocupada pela cultura nos estados do Amazonas, Pará e Tocantins, chegando a 20,6 mil hectares, segundo dados da Conab divulgados no relatório “O Brasil dos Agrocombustíveis – Cana 2008“, lançado no início deste ano pelo Centro de Monitoramento de Agrocombustíveis (CMA) da ONG Repórter Brasil.
Mais preocupante que o avanço direto da cana sobre a Amazônia é a pressão que pode fazer sobre a fronteira agrícola. A expansão das plantações de cana podem gerar “a competição com a pecuária [maior responsável pelo desmatamento da floresta amazônica], levada a expandir suas fronteiras em outros locais e regiões”, de acordo com a Repórter Brasil, “ou, ainda, a elevação do preço da terra, dificultando seu acesso a outros usos, como a reforma agrária ou o plantio de alimentos”.
Buckeridge também acredita que é preciso impedir o avanço da agropecuária na região amazônica. Enquanto não tivermos conhecimentos adequados sobre ela, a única solução é “não por a mão, não mexer, deixar certos lugares da floresta fechados”. “Se nós não conservarmos, queimarmos e liberarmos a Amazônia nós estamos perdidos: a água não chega aqui no Sudeste, vamos emitir um monte de carbono e aí há uma catástrofe realmente”.
Os professores Silva Dias e Buckeridge participaram de entrevista coletiva durante o curso de complementação universitária “Descobrir a Amazônia – Descobrir-se repórter”, dirigido a estudantes de jornalismo. O curso é organizado pela Oboré, empresa que atua com projetos de comunicação, e pelo Instituto de Estudos Avançados da USP, em parceria com os centros de Comunicação Social do Exército e da Aeronáutica e com a TV USP.
(Por Amanda Rossi, EcoDebate, 12/06/2009)