Recém-lançadas, Cartilha Trabalho Legal e Manual Carvoaria Saudável contribuem para a conscientização de empregados e empregadores. Já projeto estadual que restringiria suporte econômico a escravagistas foi engavetado
Campo Grande (MS) - Duas novas publicações que visam combater o problema do trabalho escravo a partir da prevenção acabam de ser lançadas no Mato Grosso do Sul. A Cartilha Trabalho Legal - que traz princípios básicos sobre direitos e deveres dos trabalhadores rurais e urbanos - e o Manual Carvoaria Saudável - com parâmetros legais e técnicas para a instalação e funcionamento de carvoarias no estado - reúnem um conjunto de informações fundamentais para empregados e empregadores.
Para Cícero Rufino Pereira, procurador do Ministério Público do Trabalho da 24ª Região e um dos principais articuladores da iniciativa, a cartilha e o manual são "instrumentos que visam efetivar, na prática, os direitos humanos trabalhistas". De acordo com ele, as normas da legislação serviram de base para as duas publicações, mas houve um esforço complementar (que uniu esforços de técnicos, instituições e autoridades) para tornar o conteúdo mais didático, resumido e acessível ao público a que são voltados.
Iniciativas como a Cartilha Trabalho Legal, que corroboram para o conhecimento dos direitos e deveres, facilitam a superação da condição de "subcidadão", acrescenta Maucir Pauletti, coordenador da Comissão Permanente de Investigação e Fiscalização das Condições de Trabalho no Estado do Mato Grosso do Sul (CPI/FCT/MS). Na avaliação de Maucir, que é professor do Curso de Direito da Universidade Católica Dom Bosco, o poder de multiplicação por meio dos leitores pode mudar as relações sociais, inclusive as trabalhistas. "Direito não é brinde, é conquista. E não pode ser apenas de papel", sublinha o coordenador da comissão, que engloba 36 entidades e, em março, completou 16 anos de atuação em âmbito estadual. "É preciso um Estado eficiente com instrumentos que possam fazer valer essas garantias".
"O melhor remédio é a prevenção", comenta a Marlene Alves Nogueira, chefe da Superintendência Regional do Trabalho e Emprego do Mato Grosso do Sul (SRTE/MS), que também esteve no "Seminário sobre Direitos e Deveres dos Trabalhadores e Empregadores Urbanos e Rurais", evento realizado na sexta-feira passada (29) por ocasião da apresentação das recém-concluídas publicações. Além da importância no exercício de reivindicação de direitos, Marlene ressaltou que a Cartilha Trabalho Legal também é útil no sentido de fundamentar denúncias de possíveis abusos. "Nosso trabalho [como fiscais da leis trabalhistas] ficou mais fácil. Mas isso precisa chegar até à ponta".
Segundo o procurador Cícero, o Manual Carvoaria Saudável apresenta, por seu turno, orientações mais diretas e detalhadas ao setor patronal sobre providências indispensáveis quanto às relações de trabalho, aos direitos previdenciários e às questões ambientais (inclusive a respeito de eficiência energética). O parágrafo final da obra enfatiza o intento de promoção da "Justiça Social mais rápida e célere, evitando-se, com a resolução prévia de irregularidades trabalhistas, previdenciárias e ambientais, intermináveis e custosos processos judiciais". Com o manual, a alegação de desconhecimento das leis perde ainda mais força, completa Marlene, da SRTE.
A edição do Manual e da Cartilha faz parte do Termo de Compromisso de Conduta (TCC 068/2008) acertado, em agosto de 2008, entre o MPT e a siderúrgica MMX Metálicos Corumbá Ltda., que faz parte do Grupo EBX (do megaempresário Eike Batista). O TCC foi firmado após ação fiscal que encontrou uma série de irregularidades trabalhistas na planta de produção de ferro-gusa da empresa em Corumbá (MS). Foram lavrados 11 autos de infração relacionados a itens como o não registro da totalidade dos funcionários, o não fornecimento de água potável e de equipamentos de proteção individual (EPIs) exigidos em função dos riscos das atividades, bem como a falta de sanitários adequados.
No TCC, a MMX Metálicos se compromete não só com o apoio às publicações, mas também a regularizar por completo a situação na sua indústria. O termo prevê que os contratos com fornecedores da MMX incluam a obrigatoriedade de cumprimento da legislação trabalhista, de segurança e saúde do trabalho e previdenciária, sob pena de "reter os pagamentos devidos ou suspender a aquisição de carvão". Em outubro de 2008, a empresa recebeu cinco multas do Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama) que, ao todo, superaram R$ 29,4 milhões, sob a justificativa de compra de carvão vegetal sem origem legal e comprovada. Em 2007, a empresa já havia sido punida com uma multa de R$ 1 milhão pela mesma infração, ligada ao deflorestamento de área da Terra Indígena (TI) Kadiwéu.
A MMX vem alegando que não utiliza matérias-primas que não estejam regularizadas do ponto de vista ambiental e está recorrendo na Justiça. De qualquer forma, dados do Ibama mostram que apenas 3% (R$ 3,4 milhões) do total de multas aplicadas pelo órgão federal em 2008 (R$ 174 milhões) foram efetivamente pagas até 17 de dezembro do ano passado.
Desafios
A combinação entre a produção de riqueza com o equilíbrio ambiental e a dignidade dos trabalhadores é um dos desafios centrais da humanidade, salienta o deputado estadual Pedro Kemp (PT-MS), que também compareceu ao lançamento da cartilha e do manual. "Se nós considerarmos a situação normal, diante das denúncias de trabalho escravo, perderemos o senso da dignidade da pessoa humana", clama o parlamentar petista.
"É preciso que a sociedade reaja. Não podemos deixar [esse problema] na mão apenas do Ministério Público do Trabalho [MPT], do Ministério do Trabalho [e Emprego (MTE)] e da Comissão Permanente [de Investigação e Fiscalização das Condições de Trabalho (CPI/FCT/MS)]", completou Pedro Kemp.
As novidades do combate ao trabalho escravo no campo da prevenção no Mato Grosso do Sul não estão sendo acompanhadas no lado econômico. De autoria do Executivo estadual da época de Zeca do PT, o Projeto de Lei (PL) 150/2006 - que vedava a "formalização de contratos e convênios com órgãos e entidades da administração pública e o cancelamento de concessões de serviço público a empresas que, direta ou indiretamente, utilizem trabalho escravo na produção de bens e serviços" - foi arquivado em meados de 2008 a pedido do governo André Pucinelli (PMDB).
Fortalecida em seu teor de restrição por um substitutivo de Pedro Kemp que incluía ainda a proibição de incentivos fiscais estaduais, a matéria foi à votação na Comissão de Constituição, Justiça e Redação (CCJR) da Assembléia Legislativa do Mato Grosso do Sul em abril do ano passado. Na referida instância, recebeu apenas um voto favorável, de Pedro Teruel (PT), suplente de Pedro Kemp na comissão. Os outros deputados acompanharam o parecer do relator, Onevan de Matos (PDT), que considerou o PL 150/2006 inconstitucional, com base na justificativa de que apenas o governo estadual dispõe de competência para decidir sobre situações dessa ordem.
Para complicar a aprovação da medida antiescravagista, o deputado estadual Antônio Carlos Arroyo (PR) ainda conseguiu aprovar emendas que propositadamente descaracterizaram o foco central da proposta. Ele propôs a ampliação do veto a contratos e convênios às entidades ligadas a movimentos sociais que promovessem ocupação de fazendas ou a organizações indígenas que participassem de retomadas de territórios tradicionais no estado. Essa manobra praticamente selou o "engavetamento" do processo, pois a aprovação da medida, depois das emendas, passou a ser desinteressante tanto para o governo quanto para a oposição.
Enquanto as restrições econômicas a exploradores de escravidão patinam no Legislativo estadual, a situação nas carvoarias continua grave, relata Marcos Vinício Marin, presidente do Sindicato Intermunicipal dos Trabalhadores nas Indústrias Extrativas, Mineração, Madeira e Carvão Vegetal do Mato Grosso do Sul (Sitiemc/MS). O sindicalista estima que sete em cada dez carvoarias que expelem fumaça no estado são irregulares. A fiscalização, denuncia Marcos, não dá conta de vasculhar a situação nos fornos.
Como exemplo do quadro de desamparo, Marcos cita a situação verificada recentemente no município de Ribas do Rio Pardo (MS), a 90 km da capital Campo Grande. Mais de uma centena de trabalhadores passaram a perambular e dormir nas ruas da cidade depois da demissão em massa de carvoarias, serrarias e da siderúrgica Vetorial (que também "carrega" multas ambientais que, somadas, chegam a mais de R$ 40 milhões). O presidente do Sitiemc/MS afirma que a maioria dos desalojados é de migrantes que foram aliciados por "gatos" em outros estados como Minas Gerais, Bahia e Maranhão.
"A iniciativa do lançamento da cartilha e do manual é louvável, mas é preciso muito mais para mudar essa situação", completa Marcos Vinício. Ele pede mais punições na esfera penal para os exploradores de mão-de-obra escrava e defende a aprovação da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 438/2001, que prevê a expropriação de terras de empregadores pegos se aproveitando criminosamente de trabalho escravo.
Marcos Vinício destaca ainda a necessidade de políticas públicas sociais para a garantia de direitos aos trabalhadores e critica o direcionamento de benefícios exclusivos aos produtores que não se desdobra em melhorias efetivas nas condições de trabalho. Em meados de março deste ano, o governo estadual reduziu a carga tributária para o setor das carvoarias. O valor de referência para a cobrança do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS), para fins industriais, passou de R$ 0,43 o quilo para R$ 0,26. Os produtores do MS têm capacidade para exportar até 200 mil metros cúbicos mensais de carvão.
Checagens in loco mostram que a porcentagem de registro dos trabalhadores do setor continua baixa. No processo de avaliação técnica nas carvoarias da região de Aquidauana (MS) que fornecem carvão para a MMX, feita em novembro do ano passado por ocasião do TCC firmado com o MPT, apenas metade (68 das 145 pessoas entrevistadas) tinha a Carteira de Trabalho e Previdência Social (CTPS) assinada pelo empregador. Também foi constatado que a maioria dos contratos adota o piso salarial da categoria - e a parcela adicional relativa à produtividade normalmente vem separada.
Também presente no lançamento das publicações, o desembargador federal Francisco das Chagas Lima Filho, do Tribunal Regional do Trabalho da 24ª Região (TRT-24) fez um relato que simbolizou a indignação diante dos repetidos casos de trabalho escravo. Ele esteve com um grupo de juízes nas lavouras de Ribas do Rio Pardo (MS) em meados de maio e lembrou imediatamente das condições degradantes de trabalho verificadas em outra visita que fez à mesma região do estado 18 anos atrás. Diante da platéia, ele não se furtou em admitir: "Confesso que vi poucas mudanças".
(Por Maurício Hashizume*, Repórter Brasil, 05/06/2009)
*O jornalista compareceu ao "Seminário sobre Direitos e Deveres dos Trabalhadores e Empregadores Urbanos e Rurais", na cidade de Campo Grande, a convite da organização do evento