BR-319 cruza campos onde vive ave ainda desconhecida. Queimadas e desmatamento podem destruir esses ambientes
Uma gralha recém-descoberta no estado do Amazonas ainda nem foi batizada pelos cientistas, mas já está ameaçada. Ela só vive em um ambiente peculiar que margeia a rodovia BR-319, que liga Porto Velho, em Rondônia, a Manaus, no Amazonas. Atualmente, a estrada está abandonada e intransitável, mas sua reforma está dentro do cronograma do Plano de Aceleração do Crescimento (PAC). Com a rodovia voltando a funcionar, a ave tende a desaparecer, pois pode não resistir às queimadas e desmatamentos que começarão a ocorrer na região.
Quem faz o alerta é o ornitólogo – especialista em aves – que descobriu a nova espécie, Mario Cohn-Haft. “Levando em consideração os precedentes que temos na Amazônia, a ameaça é enorme”, afirma o pesquisador, que trabalha no Inpa (Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia). “Todos os exemplos que temos de asfaltamento de estradas na Amazônia levaram a muita degradação ambiental. Não temos porque acreditar que neste caso será diferente. Só que ao longo da BR-319 perderemos animais e plantas que não ocorrem em nenhum outro lugar do planeta”, alerta.
Entre a floresta e o cerrado
A nova gralha descoberta vive entre os rios Madeira e Purus, justamente no traçado da BR-319. Como outras gralhas, é grande em relação a outros pássaros, colorida, barulhenta e anda em bandos. Ela habita as bordas dos grandes campos naturais que ocorrem na região, em uma faixa estreita de vegetação que é uma mistura entre cerrado e floresta. Segundo Cohn-Haft, são justamente essas matas ralas beirando o campo que tendem a desaparecer se começarem a ocorrer queimadas na região. “A ave depende totalmente dessa vegetação única. Quando se queima o campo, é eliminada a transição e é acentuada a diferença entre campo e mata”, explica.
Os hábitos da gralha foram estudados a fundo pelo pesquisador Marcelo Augusto Santos Jr, orientado por Cohn-Haft. Ele descobriu que a ave coloca seu ninho sempre próximo à margem dos campos, em capões de mata. Somando toda a área que pode ser ocupada pela espécie, concluiu-se que esse espaço é tão pequeno que a ave já pode ser considerada vulnerável à extinção. Com a ocupação da estrada, essa ameaça torna-se real. “Só se precisa permitir que gente chegue perto para destruir o ambiente dela. O ser humano parece não saber conviver com campos naturais sem queimá-los. Os campos próximos à cidade de Humaitá, por exemplo, não hospedam a gralha porque queimam todo ano”, diz Cohn-Haft.
Aventura amazônica
A descoberta da nova ave fez parte de uma via-crúcis que o cientista fez pelo Amazonas em busca dos campos da região. Desde a década de 1990, ele olhava os mapas e desconfiava de que espécies novas poderiam ocorrer nos campos entre os rios Madeira e Purus, mas o acesso ao local era inviável. Não havia estradas nem rios que ajudassem a chegar lá. “Em 1997, convenci alguns amigos a rachar umas horas de vôo, para ver de perto. Acho que fomos os primeiros cientistas a ver aqueles campos. Não havia nenhum sinal de gente, estava muito longe de tudo. Ainda hoje, essas campinas são muito pouco estudadas”, relata.
Depois, disso, o pesquisador tentou chegar a esses campos por terra. Foram três tentativas frustradas. “Sempre alguma coisa dava errado. O carro quebrou, caiu o hélice da canoa, e na terceira tentativa, tivemos que dormir no chão do mato antes de finalmente chegar, no dia seguinte.” O perrengue, contudo, valeu a pena. Em 2003, o ornitólogo viu pela primeira vez a gralha desconhecida, mas não conseguiu chegar perto dela. Foi apenas em 2005, depois de caminhar mais de 18 quilômetros em uma estrada de terra em que o carro não conseguiu entrar, que Cohn-Haft pôde capturar a ave e compará-la com as espécies já estudadas. Foi só então que ele conseguiu comprovar tratar-se de um animal jamais visto.
Espécies inéditas
A região cortada pela BR-319 é uma das mais preservadas da Amazônia, mas também uma das menos estudadas pelos cientistas. Segundo o especialista do Inpa, há várias outras espécies de plantas e animais que já foram descobertos na região, mas ainda nem foram nomeados. “Se nos poucos trabalhos que desenvolvemos na região já encontramos três aves, um macaco e uma palmeira, todos novos para a ciência, é muito natural supor que ainda tem muita coisa a ser descoberta nesse lugar”, prevê.
(Por Iberê Thenório, Globo Amazônia, 09/06/2009)