Uma nova tecnologia consegue gerar eletricidade a partir do contato da água doce dos rios com o mar. O único problema: o preço ainda é muito salgado
O engenheiro químico americano Sidney Loeb teve duas ideias revolucionárias em sua carreira. A primeira lhe ocorreu na década de 50, quando trabalhava na Universidade da Califórnia, nos Estados Unidos. Loeb desenvolveu os princípios de um sistema de filtros capazes de extrair o sal da água marinha e torná-la própria para a agricultura e para o consumo doméstico. O sistema exige grande quantidade de energia para bombear a água marinha pelos filtros, mas é essencial em países com pouca opção hídrica, como Israel. E hoje 3% da água potável do mundo vem dessa técnica das usinas de dessalinização. A segunda ideia genial de Loeb pode ter um impacto ainda maior. Ela simplesmente inverte o princípio usado na dessalinização: transforma água doce em salobra – e gera eletricidade. Se o processo for viável em larga escala, poderá matar a sede de energia limpa do mundo.
A ideia de Loeb explora uma característica física peculiar dos líquidos: a osmose. Trata-se de um princípio segundo o qual soluções líquidas separadas por uma membrana semipermeável tendem a ter igual concentração de substâncias. Por causa da osmose, a água sempre se movimenta do meio mais ralo para o mais concentrado, com o objetivo de equilibrar os dois. É assim que as células dos seres vivos conseguem trocar água com o líquido a sua volta. O processo de dessalinização inventado por Loeb se inspira nesse fenômeno natural. As usinas captam água do mar (com alta concentração de sal) e a bombeiam em alta pressão por meio de tubos com membranas semipermeáveis. Só a água vai para o outro lado, deixando para trás uma mistura com concentração maior de sal, que é despejada de volta no mar. O que sai do outro lado do cano é água doce mais pura que a das nascentes das montanhas.
Agora, a ideia é usar o percurso contrário da água. Loeb propõe colocar água doce ao lado da salgada. Pela osmose, a água doce vai correr para o lado da salgada, criando um fluxo contínuo que pode ser usado para acionar uma turbina e gerar energia. Para usar essa energia, é preciso construir usinas na foz dos rios, aproveitando as condições naturais de encontro da água doce com a salgada. As obras envolvem diques para canalizar o fluxo dos rios para dentro de uma instalação. A água ficaria em um reservatório, ao lado da água salgada. Ali, a pressão da água é transformada em eletricidade. A água salobra resultante é despejada no mar. Pelas estimativas da empresa de energia norueguesa Statkraft, se todos os recursos hídricos do planeta fossem usados para isso, seria possível produzir o equivalente ao consumo de energia da China em 2002. Somente o Rio Amazonas poderia gerar 35 vezes mais energia que a usina de Itaipu.
A primeira vantagem da energia do sal é seu impacto relativamente pequeno nos rios. Bastam pequenas obras para canalizar parte da água. Além disso, ela funciona em qualquer situação climática, sem depender de sol, chuvas ou vento. “Com os preços da energia subindo e uma maior preocupação em criar fontes de energia renovável, a osmose tornou-se uma excelente alternativa”, afirma Stein Erik Skilhagen, diretor do projeto da Statkraft, uma das principais incentivadoras dessa tecnologia.
A Statkraft pretende inaugurar neste semestre o primeiro protótipo de energia do sal em Tofte, na Noruega. O projeto demorou vários anos para passar à prática. “O maior desafio foi criar uma membrana que simule o mesmo processo de osmose na natureza”, diz Skilhagen. A usina experimental é pequena. Vai gerar o suficiente apenas para aquecer alguns bules de água. A ideia é aperfeiçoar o protótipo nos próximos dois anos, e aí construir uma usina do tamanho de um campo de futebol, com o poder de gerar energia capaz de abastecer 15 mil casas.
Alguns duvidam que a tecnologia possa ser aplicada no mundo todo. Na Noruega é mais fácil, pois seus rios são cristalinos. Em bacias como a do Amazonas, as membranas teriam de ser frequentemente limpas, para os detritos não impedirem o fluxo de água. Com esse obstáculo em mente, a empresa holandesa Wetsus criou um projeto alternativo de osmose. Ele funciona como uma bateria e é semelhante às máquinas usadas para fazer hemodiálise. Não é a água a responsável por gerar energia, mas a carga elétrica existente no sal. Quando a água salgada é colocada em contato com as membranas, as cargas positivas do sódio e as cargas negativas do cloro se movem para lados opostos e criam um fluxo de energia. Como a água não precisa atravessar as membranas, a lama não é um problema.
A osmose ainda é cara. Seus custos assemelham-se aos da energia eólica. Estima-se que uma usina do tamanho de dois campos de futebol e com capacidade de produzir energia para abastecer oito trens custe aproximadamente US$ 600 milhões. Mas, uma vez que a tecnologia se aprimore, o preço pode baixar. Com a demanda crescente por fontes limpas, pode começar a ser viável. Sidney Loeb não chegou a ver seu projeto posto em prática. Ele morreu em dezembro de 2008, aos 92 anos. Pode ter deixado uma preciosa herança para o mundo.
(Por Margarida Telles, Revista Época, 27/05/2009)