Desde a virada do século se discute qual seria a dimensão do estrago ambiental na região do Pantanal. Que há problemas, ninguém duvida. Mas alguns produtores rurais diziam que o problema era pontual, próximo das regiões densamente povoadas. Alguns ambientalistas, ao contrário, alardeavam que 70% da região já estava comprometida. Um estudo ainda inédito, revelado com exclusividade à ÉPOCA, mostra o verdadeiro tamanho do problema: já perdemos 40% da cobertura vegetal da região. É um índice preocupante. O que sustenta a beleza e a diversidade biológica extraordinárias do Pantanal é um equilíbrio frágil entre períodos de cheia e de seca. Esse equilíbrio está ameaçado pela expansão da pecuária e pela produção de carvão vegetal para siderúrgicas.
O mapeamento foi feito por cinco entidades ambientalistas – WWF-Brasil, SOS Mata Atlântica, Conservação Internacional, Avina e Ecoa. A conclusão: embora a planície esteja bem preservada, com 85% de sua vegetação intacta, a região das terras altas já tem 58% das matas comprometidas. Nesses planaltos estão as cabeceiras dos rios responsáveis pelos ciclos de cheias que tornam o Pantanal a maior área alagada do mundo. Essas inundações são fundamentais para manter a biodiversidade da região – suas 263 espécies de peixes, 122 de mamíferos, 93 de répteis e 656 de aves, além de 1.132 espécies de borboletas catalogadas.
A ampliação de pastagens é uma das principais causas do desmatamento no Pantanal. Nos últimos seis anos foram abertos 12.000 quilômetros quadrados de novos pastos na região, o equivalente a dez municípios do Rio de Janeiro. O processo deve se acelerar. “Só em Mato Grosso do Sul existem 22 milhões de cabeças de gado, que crescem a cada ano e são a base da economia local”, diz o engenheiro ambiental Michael Becker, do WWF-Brasil, um dos coordenadores do mapeamento. Além de aumentar, o rebanho está migrando para uma área menos adequada. Antes, a pecuária se concentrava nos campos naturais da região de planície, a área alagável do Pantanal. Agora, os rebanhos estão seguindo para as partes altas, onde a vegetação natural precisa ser derrubada para a formação de pastagens. O que empurra o gado é o crescimento do cultivo de cana-de-açúcar nas planícies pantaneiras nos períodos de seca.
Esse estudo da vegetação se junta a outro, do Coppe (centro de pesquisa de engenharia da Universidade Federal do Rio de Janeiro), que fez um diagnóstico de uma área crítica do Pantanal, um conjunto de morros perto de Corumbá, em Mato Grosso do Sul. A região, conhecida como a Morraria de Urucum, tem montanhas de até 1.000 metros de altitude e guarda a terceira maior jazida de minério de ferro e manganês do país. A riqueza mineral atraiu dezenas de mineradoras e siderúrgicas nos últimos dez anos.
Se causam alarme por revelar uma devastação bem maior do que se esperava, esses dois estudos também trazem esperança. Agora que se sabe onde está a devastação, e como ela se espalha, é possível criar mecanismos e políticas públicas para combatê- -la. Segundo o levantamento do Coppe, um dos primeiros impactos da mineração é a redução na quantidade de água. Dois rios da região de Maria Coelho, em Corumbá, já teriam praticamente secado.
“Não podemos afirmar que esse esgotamento foi todo gerado pelas empresas, pois a população também faz uso indevido da água e canalizações irregulares nos córregos”, diz Ricardo Melo, promotor do meio ambiente de Corumbá. “Mas estimamos que 70% do problema é causado pela mineração. E agora sabemos o que as empresas podem fazer para reduzir seu impacto.” Melo afirma que as empresas vão ter de criar um ponto de captação de água diretamente no Rio Paraguai, que tem uma vazão maior, e prestar conta sobre o volume de água que consomem. “Temos de aproveitar que, com a crise econômica, as empresas estão com suas atividades parcialmente suspensas para colocar em prática esses mecanismos de regulação”, afirma. “Assim, quando a demanda do ferro voltar a crescer, poderemos evitar o pior.”
A queima de vegetação nativa para a fabricação de carvão foi a segunda ameaça revelada pelo estudo. Esse carvão teria como destino a produção de ferro-gusa, principal matéria do aço. Uma das surpresas foi constatar que 70% desse carvão seria vendido às empresas de Minas Gerais, e não para as siderúrgicas de Mato Grosso do Sul, como se acreditava. “Precisamos descobrir como evitar que o Pantanal seja destruído para um fim tão pouco promissor como a produção de carvão. Estamos literalmente queimando biodiversidade, sendo que já existem opções de combustíveis mais sustentáveis para fabricar ferro-gusa”, diz Alcides Faria, diretor da ONG Ecoa (Ecologia e Ação), de Campo Grande.
Algumas forças estão se unindo para evitar o pior. O estudo do Coppe foi encomendado por um grupo de empresas e ONGs que decidiram buscar um equilíbrio entre a exploração mineral no Pantanal e a preservação do meio ambiente. Há três anos empresas e ambientalistas se encontram para negociar em um grupo intitulado Plataforma de Diálogo do Pantanal. “No começo era difícil porque havia desconfianças de ambos os lados”, diz Regina Schio, gerente de produção da MS Gás, uma das empresas da plataforma. “Agora todo mundo se conhece e, se não atuarmos com transparência, não vamos chegar a lugar nenhum.” O grupo também reúne as empresas Petrobras, MMX e Vetorial e as ONGs WWF, Conservação Internacional, Avina, Ecotrópica e Instituto Homem Pantaneiro (do músico Almir Sater).
Apesar das intenções, a Plataforma enfrenta grandes desafios. O primeiro é conquistar empresas de porte que ainda não participam da iniciativa, como a Vale, a Votorantim e a Rio Tinto. Todas fabricam ferro-gusa ou exploram minas na região do Maciço de Urucum. A Vale disse a ÉPOCA que integrará as discussões no futuro. A Rio Tinto vendeu sua mina recentemente para a Vale. A Votorantim não respondeu à reportagem até o final da semana.
O segundo desafio da Plataforma é driblar uma limitação que a lei brasileira impõe à conservação. Pela Constituição, a atividade mineradora tem prioridade sobre qualquer decisão de conservação ambiental. A descoberta de uma jazida mineral importante pode até gerar a extinção de uma unidade de conservação. Com o aumento da demanda pelo ferro, principalmente para exportação, os diálogos pela preservação podem perder força no Pantanal. “As empresas terão de fazer um acordo de cavalheiros para decidir que área da Morraria de Urucum terá mineração”, diz Sandro Menezes, da Conservação Internacional. Para fazer essa escolha, elas terão de correr riscos. Um deles é perder o direito de mineração da área para uma concorrente que não faça parte da Plataforma. “Para proteger a Morraria de Urucum, vamos ter de criar um mecanismo ainda inédito no país e no mundo”, diz Menezes.
Se o diálogo entre empresas e ONGs fracassar, a região da Morraria de Urucum, no coração do Pantanal, corre o risco de reviver a história de Minas Gerais. Lá, a exploração desordenada do minério de ferro transformou morrarias semelhantes em paisagens lunares. Como descreveu o poeta mineiro Carlos Drummond de Andrade ao ver a destruição de uma das paisagens de sua infância, em Itabira: “O Pico do Cauê já não se alteia. Mas no coração da gente ele resiste”. Por outro lado, se a iniciativa frutificar, poderá virar um modelo de exploração mineral com menores impactos ambientais. E também um exemplo de ação empresarial para ajudar a salvar outras áreas ricas em minério e biodiversidade, como algumas da Amazônia.
(Por Juliana Arini, Revista Época / EcoDebate, 04/06/2009)