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passivos dos biocombustíveis cana-de-açúcar trabalho escravo
2009-06-04

Até o momento, fim da intermediação de mão-de-obra é o ponto principal do termo de compromisso negociado entre patrões e empregados, com ajuda do governo. Para Unica, sistema de alimentação é caro e logística é complicada

São Paulo (SP) - Precavido contra possíveis barreiras comerciais ao etanol brasileiro, o governo prepara um termo de compromisso junto a patrões e empregados do segmento sucroalcooleiro no que se refere à situação trabalhista nas lavouras canavieiras do país. O acordo, que deve ser anunciado em Brasília ainda neste mês, é resultado da "Mesa de Diálogo para Aperfeiçoar as Condições de Trabalho na Cana-de-Açúcar", instalada em julho do ano passado a pedido do presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

O "Compromisso Nacional", como está sendo chamado o protocolo de intenções elaborado por representantes dos usineiros, trabalhadores e governo, foi coordenado pela Secretaria-Geral da Presidência da República (SG/PR). Desde o início de maio, o texto aguarda o aval do presidente, que dará a palavra final sobre os itens que forjaram consenso nas reuniões do grupo. Existem ao todo ao menos cerca de 500 mil trabalhadores no corte de cana no país.

O principal ponto anunciado até agora - são cerca de 50 itens de consenso no total - é o fim da intermediação de mão-de-obra para produção de cana ou etanol, numa tentativa de eliminar a figura do "gato", que faz o aliciamento para empreitadas no meio rural. "Isso [a intermediação] é um caos para a vida dos trabalhadores. Já valeria o compromisso só por este item", comemora Elio Neves, presidente da Federação dos Empregados Rurais Assalariados do Estado de São Paulo (Feraesp), que participou da mesa de diálogo.

O acordo também prevê o fortalecimento da negociação coletiva, instalação de alojamentos adequados, multiplicação dos postos do Sistema Nacional de Emprego (Sine) nas regiões de origem dos migrantes - na mesma linha do Programa Marco Zero -, direito ao acesso a meios de comunicação para trabalhadores de outras localidades, e respeito à saúde e segurança laboral, com fornecimento de equipamentos de proteção individual (EPIs) e transporte seguro, além de soro e hidratante sob acompanhamento médico.

O governo federal se comprometeu a alfabetizar e aumentar a escolaridade dos trabalhadores, além de qualificá-los para eventual reinserção produtiva. Ainda não há meta estipulada para essa requalificação nem previsão de investimento inicial. "O objetivo principal é que as boas práticas sejam disseminadas e possam estar presentes em todas as empresas brasileiras do setor", declarou Antonio Lambertucci, ministro interino da Secretaria-Geral da Presidência, durante a abertura do Ethanol Summit 2009, encontro internacional sobre o tema promovido pelo setor empresarial que ocorre esta semana na capital paulista, nesta segunda-feira (1º).

"Os cortadores são uma categoria esquecida desde o período do Brasil colonial. A primeira conquista do acordo é que a nação está tendo esse reconhecimento", afirma Elio Neves, presidente da Feraesp. Segundo ele, o avanço agora vai depender da mobilização da categoria e da conjuntura política do país. "Para ganhar o planeta, o etanol brasileiro precisa ter responsabilidade social. A legislação trabalhista ainda não chegou ao campo", lamenta.

Uma comissão nacional tripartite - governo, empresas e trabalhadores - está sendo formada para implementar e acompanhar os resultados do "pacto". Pelo lado dos trabalhadores, participam a Feraesp e a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag). Os empresários foram representados pela União da Indústria de Cana-de-Açúcar (Unica) e pelo Fórum Nacional Sucroalcooleiro. Todas essas entidades também integraram a mesa de diálogo organizada pela Secretaria-Geral da Presidência.

Limites

A despeito do discurso oficial, o alcance e os efeitos imediatos da iniciativa do governo permanecem incertos. A adesão dos produtores de cana será voluntária e não existe previsão de punição para aqueles que não assinarem. O acordo deve estabelecer prazos para cumprimento das exigências, levando em conta a necessidade de ajuste de cada empresa. Também entrará em vigor uma auditoria externa e um mecanismo de certificação. "Ainda temos que trazer os fornecedores para o acordo", admite Marcos Jank, presidente da Unica, uma das maiores entidades representativas do setor agroenergético do país.

Além dessas incertezas, alguns pontos considerados importantes pelos trabalhadores não foram aceitos pelas entidades patronais e ficaram de fora do protocolo. As usinas se recusaram, por exemplo, a fornecer alimentação e um piso salarial nacional para a categoria. "Como conceber um setor produtivo que se diz capaz de abastecer os tanques dos automóveis do mundo inteiro e não abastece os estômagos dos empregados?", questiona Elio Neves, da Feraesp.

À Repórter Brasil, o presidente da Unica Marcos Jank tentou explicar o veto à proposta de oferecer comida aos cortadores. "O sistema de alimentação é muito caro e tem uma logística complicadíssima", afirma. O empresário nega ainda que a recusa seja decorrente de um possível temor dos usineiros em relação à fiscalização da vigilância sanitária nas frentes de trabalho.

Os sindicatos também criticam a ausência de um piso salarial nacional. "Atualmente chega a um ponto vergonhoso de um mesmo grupo econômico ter três ou quatro pisos salariais", denuncia Elio Neves. Jank argumenta que o setor é "extremamente heterogêneo" nas várias regiões do país, o que dificultaria a fixação de um piso único para todo o país.

Ilegal
Para Marcus Barberino, juiz federal do Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região, que está à frente de um curso sobre trabalho escravo voltado para agentes do Judiciário, o compromisso entre governo, usineiros e trabalhadores representa, em linhas gerais, um grande "chamamento do Estado para que o setor se legalize nas bases de funcionamento do capitalismo brasileiro". "O setor está pressionado pelas sentenças judiciais", afirma o magistrado.

Em abril de 2007, o Grupo Cosan, maior conglomerado sucroalcooleiro do mundo, firmou um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) com o Ministério Público do Trabalho (MPT). Pelo acordo, as usinas da empresa devem reduzir os contratos terceirizados de bóias-frias do corte da cana até 2010, quando deverão registrar diretamente 100% dos trabalhadores. "Como a Cosan começou a cumprir, vai arrastando as demais empresas", diz Marcus Barberino.

Para o juiz, a contratação direta tende a melhorar as condições de trabalho e facilitar a fiscalização da vigilância sanitária, do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) e do Ministério Público do Trabalho (MPT). "A chamada terceirização à brasileira, com os `gatos´ e outros intermediários de gente, é função da degradação do meio ambiente do trabalho e do trabalho forçado", argumenta. Segundo ele, o grau de formalização da cana no país é de 70%.

O próprio setor vive atualmente um processo de centralização "brutal", realça Marcus. Para o juiz do Trabalho, o grande problema não é a qualidade da lei nem o grau de idoneidade do Poder Judiciário, mas sim a capacidade de "resistência" do cumprimento da lei pelo capital. "É um aspecto próprio da correlação de forças da sociedade brasileira", define.

Por produção
O protocolo de intenções também cita, de forma genérica, a necessidade de uma maior "transparência" na aferição da cana cortada, mas defende a continuidade do pagamento por produção. O pacto também estabelece a possibilidade de uma complementação de renda, quando a meta de produção não for atingida. O pagamento por produção é considerado uma das causas das doenças decorrentes do processo de intensificação do trabalho nos canaviais.

O professor Francisco Alves, do departamento de engenharia de produção da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), pesquisa o setor sucroalcooleiro desde a década de 1980. Ele avalia que é impossível garantir trabalho decente se o cortador tem que "se matar de trabalhar, em alguns casos literalmente". "O trabalhador não sabe quanto vai ganhar, o cálculo é feito de forma complexa, envolve estatística e conversão do valor do metro para tonelada". Segundo ele, após 12 anos cortando cana o trabalhador já fica incapacitado.

Francisco defende o pagamento por jornada como um mecanismo mais justo de remuneração, com uma rotação de tarefas na lavoura. Geralmente um único cortador é responsável pelo corte, limpeza e carregamento da cana. "Isso pode ser feito em rodízio", afirma o professor. Ele ressalta ainda que é necessário aumentar a aplicação da Norma Regulamentadora (NR) 31, que dispõe sobre a segurança e a saúde do trabalhador na atividade rural.

Segundo o pesquisador da UFSCar, a reforma agrária ocupa papel central para criar alternativas de emprego para os cortadores. "O que resolve é a reforma agrária, no caso dos trabalhadores que migram das Regiões Norte e Nordeste para o corte da cana no Sudeste e Centro-Oeste. Se o governo der terra para eles plantarem, eles não precisaram migrar para cortar cana".

Conferência empresarial
Ainda durante o Ethanol Summit 2009, a Unica e a Feraesp assinaram um compromisso que prevê a requalificação de sete mil trabalhadores por ano nas lavouras de cana-de-açúcar em São Paulo. O programa pretende atingir as seis maiores regiões produtoras do estado: Ribeirão Preto, Piracicaba, Bauru, Araçatuba, São José do Rio Preto e Presidente Prudente. A tentativa de dar uma resposta ao processo de mecanização tem o apoio financeiro do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID).
O ex-presidente dos Estados Unidos, Bill Clinton, a ministra-chefe da Casa Civil, Dilma Rousseff (PT), o governador de São Paulo, José Serra (PSDB), o prefeito da capital paulista, Gilberto Kassab (DEM), e o presidente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), Luciano Coutinho, fizeram parte da lista dos principais convidados desta segunda edição do Ethanol Summit, que se encerrou quarta-feira (03/06).

O BNDES continua sendo um dos principais financiadores do setor sucroalcooleiro no país. Luciano Coutinho garantiu que o etanol brasileiro já é "sustentável, eficiente e competitivo". No ano passado, o banco público destinou R$ 6,5 bilhões para as usinas. Desde 2004, foram R$ 14 bilhões. "O BNDES tem se esforçado para acelerar seu apoio ao setor justamente nesse momento de maior dificuldade", disse. Uma das empresas apoiadas pelo BNDES, a Brenco - Companhia Brasileira de Energia Renovável contratou formalmente o "gato" João Pereira da Silva, vulgo "João Paracatu", em janeiro do ano passado, para o plantio de cana-de-açúcar na região de Mineiros (GO).

Prioridade
A comercialização do etanol no Brasil teve início em maio de 1979, e virou uma das prioridades do governo federal durante a gestão Lula, sobretudo após o crescente debate sobre a necessidade de mudanças na matriz energética para enfrentar o aquecimento global. Em 2007, o presidente chegou a chamar os usineiros do país de "heróis mundiais".

Agora, em meio à crise financeira internacional - as usinas reclamam da escassez de crédito -, o governo busca retomar a centralidade do tema na sua agenda política. "O objetivo do governo é manter a liderança do Brasil no etanol de primeira geração", afirmou a ministra-chefe da Casa Civil, Dilma Rousseff, em sua fala na cerimônia de abertura no Ethanol Summit.

Além de melhorar a imagem da produção de agrocombustíveis do país no exterior, aliviando a pressão de governos e investidores internacionais, o governo tenta encontrar uma solução política para problemas crônicos do campo, entre eles as altas taxas de superexploração da força de trabalho no cultivo manual da cana e a ação danosa provocada pelos "gatos", prática ainda disseminada no meio rural.

Em artigo publicado na revista oficial do evento, Lula também voltou a insistir que o incentivo oficial ao etanol não acarreta perigos ambientais. "Há quem veja risco na expansão da produção de etanol. No entanto, posso adiantar que o Zoneamento Agroecológico da Cana-de-Açúcar, que está em fase final de preparação, proíbe a plantação em áreas de produção de alimentos, nos biomas Amazônia e Pantanal, assim como em terras indígenas, áreas de conservação e de vegetação original", reforçou o presidente.

Escravidão
Nos últimos anos, o setor sucroalcooleiro vem despontando no ranking de libertações de trabalhadores escravizados no país. Segundo dados da Comissão Pastoral da Terra (CPT), 2.553 trabalhadores deixaram a condição análoga à escravidão nas lavouras de cana-de-açúcar em 2008. O índice representa 49% do total de 5.244 trabalhadores encontrados nessas condições no ano passado, acima dos 1.026 (20%) libertados na atividade pecuária.

Além da escravidão contemporânea - o mais grave caso de violação dos direitos humanos verificado nas usinas -, as infrações encontradas pelos auditores do trabalho no setor sucroalcooleiro dizem respeito a problemas como a falta de instalações sanitárias adequadas e água potável, ausência de EPIs e outros tipos de irregularidades na gestão de saúde e segurança. Um amplo panorama sobre os impactos sociais e ambientais da expansão da cana-de-açúcar no país pode ser conferido no relatório sobre a cana do Centro de Monitoramento de Agrocombustíveis (CMA) da Repórter Brasil.

(Por Maurício Reimberg*, Repórter Brasil, 02/06/2009)
*Colaborou Bianca Pyl


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