Em greve há 40 dias, comunidades indígenas exigem anulação de decretos que permitem ação das transnacionais em suas terras
Há pouco mais de um mês, comunidades indígenas de quatro departamentos (Estados) peruanos decidiram mandar um sinal claro de insatisfação ao governo de Alan García. Cortes de estradas e pontes, protestos e greves de cerca de 1,2 mil comunidades tiraram da normalidade os Estados de Cusco, Loreto, Amazonas e Ucayal, regiões de floresta amazônica. A resposta do governo federal foi a de sempre: repressão. Declarou estado de exceção por 60 dias, no dia 9 de maio, em diversas localidades dessas províncias e prenderam pelo menos seis lideranças nos últimos dez dias.
A insatisfação das entidades indígenas peruanas tem como origem uma série de medidas provisórias (chamadas de “decretos legislativos”) anunciada pelo presidente do Peru no ano passado que tem como objetivo preparar o terreno para a implementação do Tratado de Livre Comércio (TLC) com os Estados Unidos e, de quebra, também abre caminho para as obras do Iniciativa para a Integração da Infraestrutura Regional Sulamericana (IIRSA).
Os movimentos sociais argumentam que as medidas aprofundam ainda mais o modelo neoliberal, promovendo a privatização dos recursos naturais do país (como a água, a biodiversidade e as terras). “O interesse do governo é facilitar ao máximo a entrega dos territórios e dos bens naturais às empresas transnacionais, insistindo em aplicar o modelo neoliberal que já colapsou. É nos territórios das comunidades onde estão esses recursos e por isso o próprio presidente Alan García nos ataca”, diz Miguel Palacín coordenador geral da Coordenação Andina das Organizações Indígenas (Caoi).
Ainda em julho do ano passado, foi feita uma greve geral no país que obteve a revogação de duas dessas leis, além de uma promessa de abertura de uma mesa de negociação. Mas, de acordo com Palacín, os grupos nunca foram chamados para o diálogo e diante das novas ofensivas, decidiram partir para a ofensiva.
Decretos legislativos
Os movimentos indígenas contestam pontualmente nove decretos; alegam que eles ferem a Constituição e acordos internacionais que o Peru é signatário. Um desses decretos (nº 1090) delega ao Ministério de Agricultura o poder de autorizar a devastação, em até 60%, de bosques para operações de petroleiras, mineradoras e indústrias. No dia 19 de maio, ele foi declarado inconstitucional pela Comissão de Constituição do Congresso Nacional, decisão festejada pelos movimentos sociais. Agora, a lei voltará ao Congresso para ser votada novamente. Na próxima semana, outras cinco leis serão votadas pela Comissão. Um dos argumentos usados pelos movimentos para derrubá-las, além da inconstitucionalidade, é que eles ferem a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e a Declaração das Nações Unidas sobre os direitos dos Povos Indígenas.
As outras duas leis anteriormente barradas permitiam a venda de terras indígenas para a iniciativa privada. Para Palacín, o objetivo do governo García é fazer “desaparecer as comunidades andinas e amazônicas, pré-existentes ao atual Estado, e tentar mudar nossas formas de organização e de tomada de decisões”. Atitude que também vai ao encontro dos interesses imperialistas na região, já que o Peru, junto com a Colômbia, é um país central para a manutenção da presença militar e política dos Estados Unidos na região. “Com a desativação da base de Manta [localizada no Equador e que deverá se desativada, a pedido de Rafael Correa, até novembro deste ano], há uma investida para a construção de bases militares no Peru”, afirma o agrônomo Elder Andrade, professor do Departamento Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Acre (UFAC).
Repressão
Outra norma contestada pelos movimentos sociais peruanos é a Lei de Recursos Hídricos, promulgada em março deste ano e que abre a brecha para a privatização da água. As comunidades amazônicas em greve há 40 dias prometem manter a paralisação até conseguirem conquistar uma mesa de diálogo com o governo. Até agora, García tem ignorado as organizações populares. “Ele praticamente desconhece nossa existência e nos acusa de ser um empecilho para o desenvolvimento do país”, explica Palacín.
Os governos provinciais tampouco têm uma postura menos repressiva. “Há muita diversidade de posturas políticas nos governos provinciais e regionais, mas a maioria, incluindo os que se dizem de oposição, se alinha com o modelo econômico neoliberal, de saque aos bens naturais e depredação da natureza, ainda que alguns deles formem mesas de diálogo, os acordos não são cumpridos”.
A esse cenário politicamente conservador, soma-se um forte clima de contenção social. Palacín explica que a violência e criminalização aos movimentos sociais vêm sendo institucionalizadas no país. Em 2007 o governo, também por meio de decretos legislativos, tornou legal a repressão e prisões em protestos populares. Palacín conta que hoje há cerca de mil líderes comunitários respondendo por processos na Justiça.
(Por Dafne Melo, Brasil de Fato, 22/05/2009)