Cópia de contrato revela acordo formal entre companhia sucroalcooleira e "João Paracatu", conhecido aliciador de mão-de-obra em Goiás. Pagamento de "gato" consistia em 10% do valor total de produtividade dos "recrutados"
À frente de investimentos nacionais e internacionais bilionários para a produção de etanol e de agroenergia no Brasil, a empresa Brenco - Companhia Brasileira de Energia Renovável contratou o "gato" João Pereira da Silva, vulgo "João Paracatu", em janeiro do ano passado, com a finalidade de "assessoria no recrutamento de 240 trabalhadores rurais" e de "assessoria na contratação e transporte dos empregados da Brenco" até fazendas na região de Mineiros (GO) para o plantio de cana-de-açúcar no início de 2008.
Em fevereiro de 2008, 17 dos trabalhadores "recrutados" por "João Paracatu" para a Brenco, presidida por Henri Philippe Reichstul (ex-Petrobras), foram encontrados em condições análogas à escravidão em Campo Alegre de Goiás (GO), conforme o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE).
Cópia obtida pela Repórter Brasil do "Contrato de prestação de serviços de recrutamento de mão-de-obra" revela a recompensa do "gato": 10% do valor total de produtividade dos trabalhadores por "aliciados" a cada mês, acrescido do descanso semanal remunerado (DSR). O documento estampa a validade prevista do acordo: cinco meses - de janeiro até o final de maio de 2008.
Assinado entre as partes, avalizada pelo "Jurídico" da Brenco com carimbos e vistos em todas as dez páginas e autenticado junto ao 2º Tabelionato de Notas e Anexos de Mineiros (GO) em 10 de janeiro de 2008, o contrato serve como prova da ligação entre a poderosa e capitalizada empresa do agronegócio - que captara US$ 200 milhões junto a fundos e investidores em 2007, foi contemplada com financiamento de R$ 1,2 bilhão do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) em agosto de 2008 e que pretende construir um alcooduto de 1,1 mil km até o Porto de Santos (SP) - e o conhecido "gato" com intensa atuação em Goiás, envolvido em casos pregressos de trabalho escravo ocorridos na mesma e em outras regiões do estado.
"Esse contrato é aberrante: trata o trabalhador como uma mercadoria", classifica Antonio Carlos Cavalcante Rodrigues, do Ministério Público do Trabalho (MPT) de Goiás, que fez parte da equipe comandada pela auditora Jacqueline Carrijo que resgatou os 17 trabalhadores "recrutados" por "João Paracatu" para a Brenco.
Na avaliação do procurador, os termos do contrato violam artigos da Constituição Federal (inclusive o art. 1º, que trata da dignidade da pessoa humana;), da Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT) (como o art. 9º, que versa sobre atos praticados com o objetivo de desvirtuar, impedir ou fraudar a aplicação dos preceitos contidos na CLT) e incorrem em crimes previstos no Código Penal (art. 203, frustração de direito assegurado por lei trabalhista, e art. 207, aliciamento de trabalhadores de um local para outro do território nacional), sem contar o descumprimento de convenções internacionais assinadas pelo Brasil.
Em resposta à Repórter Brasil, a Brenco se limita a alegar que contratou "João Paracatu", notório "gato" da região, "para que este auxiliasse na divulgação das oportunidade de emprego disponíveis". A empresa foi advertida pela reportagem de que a afirmação de que o contratado seria apenas um "divulgador de vagas" contrariava os próprios termos do contrato, mas preferiu não dar explicações adicionais. Confirmou ainda que "não tinha qualquer conhecimento dos atos do Sr. João Pereira da Silva ["João Paracatu"] , nem tampouco poderia saber da existência de inquéritos policiais e civis contra o mesmo".
Em agosto de 2004, outra equipe do grupo móvel do MTE libertou 84 de propriedade da Agromen Sementes, também em Campo Alegre de Goiás (GO). O gato envolvido no caso era "João Paracatu", que aliciara dezenas de trabalhadores para um condomínio informal de patrões. Outros problemas de exploração criminosa de trabalhadores envolvendo o mesmo "gato" foram registrados em municípios como Catalão (GO) e Luziânia (GO).
"João Paracatu" é tão atuante em Goiás que o procurador Antonio Carlos protocolou a Ação Civil Pública 346/2009 que pede a Justiça do Trabalho o fim das atividades do "gato" e "a declaração de nulidade dos contratos de arregimentação de mão-de-obra" firmados por intermédio do mesmo. Para o procurador, "não há que se olvidar acerca da responsabilização do ´gato´ João Paracatu, o qual, contrariando garantias mínimas de higiene, conforto, alimentação e respeito à pessoa do trabalhador, maneja, inescrupulosamente, mão-de-obra por todo o Estado do Goiás com o fito único de garantir-lhe lucro ao final de cada suposta empreitada".
A despeito do histórico do contratado e das evidências em contrário, a Brenco insiste em sustentar que "não contratou e nem contrata ´gatos´". "O termo ´gato´ é utilizado para definir a pessoa que seduz trabalhadores com falsas promessas a fim de levá-los a trabalhar em outra localidade. Além de falsas promessas, em alguns casos, há a cobrança de valores", observa a empresa sucroalcooleira. A empresa não vê a caracterização das "falsas promessas" e argumenta que "contratou os trabalhadores ainda nos seus locais de origem, registrando-os conforme determina a legislação e pagando-lhes salário antes mesmo de ter início as atividades laborais".
"À época, por ser empresa desconhecida pelos trabalhadores rurais, a Brenco necessitou de auxílio na divulgação das oportunidades de emprego que seriam abertas para suas frentes de plantio no estado de Goiás, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul. Cabe ressaltar que a Brenco só contrata trabalhadores diretamente, sem a utilização de intermediários para executar tal função, em locais previamente estabelecidos e comunicados à população com antecedência", adiciona a companhia sucroalcooleira.
Além do próprio contrato, os relatos das 17 pessoas encontradas pela fiscalização não confirmam tal ausência de intermediários. Migrantes do Maranhão, os trabalhadores rurais foram abordados ainda em 2007 por "João Paracatu" em Resfriado (GO), próximo à Cristalina (GO). Ele teria prometido salário de até R$ 900, além de plano de saúde, alojamentos adequados, roupas de trabalho e despesas de alimentação pagas pela empresa contratante, logo após a assinatura de contrato de trabalho.
Atraídos pelas promessas do "gato", eles chegaram a Campo Alegre de Goiás (GO) em 6 de janeiro de 2008. No dia seguinte, foram submetidos a exame médico para admissão e tiveram as carteiras de trabalho assinadas pela Brenco. Crentes no compromisso de representantes da empresa de que seriam levados para alojamentos na região de Mineiros (GO), permaneceram alojados pelo próprio "João Paracatu" em instalações precárias e improvisadas, sem acesso sequer à água potável para beber. Quase dois meses se passaram entre o anúncio dos funcionários da Brenco (7 de janeiro) e 27 de fevereiro de 2008, data em que os fiscais encontraram o grupo.
De acordo com o MTE, o alojamento tinha apenas um banheiro, sem nenhum tipo de higiene, que exalava odor extremamente fétido. Fiscais encontraram lixo espalhado dentro e fora dos quartos. Os alojados declararam que era comum a presença de ratos e insetos. Disseram ainda que o local já estava sujo quando chegaram e que nunca receberam produtos para fazer a limpeza. Não havia colchonetes para todos e nenhum armário: objetos de uso pessoal, víveres e restos de comida ficavam no chão. As refeições eram preparadas com um fogareiro a álcool, também no chão. A água para aplacar a sede vinha das torneiras dos tanques onde a roupa era lavada. Nos depoimentos, eles declararam ter passado frio, fome e sede.
Pelo menos três dos resgatados confirmaram que um ajudante de "João Paracatu", conhecido como "Buiú", recolhera cartões bancários, extratos e senhas dos alojados, sob ameaça de não recebimento de salários. Temido por sua "fama" de "bravo", "João Paracatu" também teria dito que ninguém poderia fazer "bicos" por causa do risco de acidentes, que prejudicariam a empresa contratante (Brenco). Nos depoimentos à equipe fiscal, os "recrutados" foram assertivos em declarar que não foram embora de Campo Alegre de Goiás (GO) porque não tinham dinheiro para comprar as passagens.
A Brenco salienta que "não pode ser considerado trabalho escravo a existência de empregados que estavam em suas próprias casas, recebendo salário, ainda sem trabalhar, e aguardando o início das atividades de plantio". Indagada sobre o valor e a data exata dos pagamentos realizados aos 17 trabalhadores, a empresa responde apenas que os valores dos salários são "confidenciais". Um dos autos de infração aplicados pela fiscalização do Trabalho - Deixar de efetuar, até o 5º dia útil do mês subseqüente ao vencido, o pagamento integral do salário mensal devido ao empregado - entra em choque com a versão da empresa. O procurador Antonio Carlos recorda ainda que, no momento da fiscalização, não foram apresentados recibos dos salários.
Na visão da empresa, não há como caracterizar o caso como de trabalho escravo pelos seguintes motivos: houve o pagamento de salários; inexistiu regime de servidão por dívidas; não há qualquer registro de existência de segurança armada que impedisse ou restringisse o direito de ir e vir dos trabalhadores e/ou notícias de violências por parte da empresa ou seus prepostos; não se constatou a hipótese de isolamento de propriedade rural em relação a vilas; e não há notícia de inacessibilidade aos pontos de acesso a transporte público, tanto que há relatos de alguns trabalhadores no sentido de que tiveram livre acesso a diversos pontos da cidade.
A ocorrência de exploração de trabalho degradante - uma das formas que caracterizam o trabalho escravo segundo o art. 149 do Código Penal - no caso Brenco é "cristalina" para o procurador Antonio Carlos. "As pessoas estavam num alojamento sem qualquer habitabilidade. E além da situação degradante, tanbém houve aliciamento, comumente associado ao crime".
A companhia sucroalcooleira preferiu não se pronunciar especificamente sobre os sinais de participação ativa e de intimidação do "gato" mesmo depois da contratação dos trabalhadores. Evitou também comentar as graves denúncias de retenção de documentos bancários pelo preposto de "João Paracatu". Tampouco respondeu às perguntas sobre quantas pessoas foram contratadas por intermédio de "João Paracatu", quanto foi pago ao "gato" como porcentagem de produtividade do contingente por ele contratado e quantos outros intermediários como "João Paracatu" foram contratados para suprir a demanda de 3 mil trabalhadores rurais que participaram na época do plantio da cana para a Brenco.
Além da situação dos 17 em Campo Alegre de Goiás (GO), a fiscalização lavrou outros autos na mesma operação apontando problemas nos alojamentos Netinho 1 e Netinho 2, em Alto Taquari (MT), e nas pensões despreparadas e frentes de trabalho de plantação de cana-de-açúcar, em Mineiros (GO). Na sequência, novos problemas foram detectados na acomodação dos pedreiros contratados por empresas terceirizadas que construíam os alojamentos da Brenco.
Na Justiça
No último dia 11 de maio, a Brenco foi beneficiada por mandado de segurança preventivo proferido pela 12ª Vara do Trabalho de Brasília (DF). Na sentença, a juíza substituta Flávia Fragale Martins Pepino determina que a Secretaria de Inspeção do Trabalho (SIT) do MTE "se abstenha de incluir o nome da empresa (...) no ´Cadastro de Empregadores que tenham mantido trabalhadores em condições análogas à de escravo´ até que se tenham esgotadas todas as possibilidades de discussão dos autos de infração, inclusive na esfera judicial".
Com isso, mesmo antes de concluído o processo administrativo sobre os 17 trabalhadores de Campo Alegre de Goiás (GO), a Brenco obteve a prerrogativa de ficar fora da "lista suja". A Advocacia-Geral da União (AGU) já está entrando com recurso contra a decisão da juíza substituta.
Portaria do Ministério da Integração Nacional (MIN) de novembro de 2003 impede que agentes econômicos incluídos na "lista suja" do trabalho escravo recebam financiamento ou incentivo fiscal em estabelecimentos públicos federais de crédito e fomento. Além disso, as pessoas físicas e jurídicas que fazem parte do cadastro estão sujeitas a restrições econômicas por parte de mais de 180 companhias privadas e associações setoriais que aderiram ao Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo.
A Brenco apresentou paralelamente na Justiça pelo menos outras 39 ações, em diversas Varas de Trabalho de Goiânia, que pedem a anulação dos autos de infração da referida operação . Vale ressaltar que, além da situação dos 17, um conjunto de irregularidades trabalhistas foi verificado nas frentes de trabalho do empreendimento de cana-de-açúcar propriamente dito.
Posicionamento da empresa busca esclarecer que as ações anulatórias dizem respeito aos autos de infração lavrados "sobre situações ocorridas em suas instalações, as quais, de forma alguma relatam fatos que atentam à dignidade dos trabalhadores, mas sim, situações pontuais, que foram imediatamente sanadas, em linha com as orientações do próprio Ministério do Trabalho, antes mesmo de finda a fiscalização".
No entanto, a companhia promove uma intensa ofensiva na Justiça para anular especialmente os autos do flagrante específico dos 17 trabalhadores, que são as peças-chave para punições administrativas e judiciais relacionadas à exploração de trabalho escravo. Para tanto, a Brenco se ancora no direito à "dupla visita", previsto para novos empreendimentos pela legislação trabalhista. Segundo a empresa, a fiscalização do trabalho, por conta desse dispositivo, deveria atuar de forma a orientar a empresa que está iniciando suas atividades na "primeira visita" e não agir de forma punitiva.
Em decorrência da intervenção da Advocacia-Geral da União (AGU), esses processos movidos pela Brenco estão sendo concentrados na Vara de Trabalho de Mineiros (GO). Mas em pelo menos dois casos, magistrados da capital goiana deram sentenças quase concomitantes negando o pedido da empresa de anulação dos autos de infração.
Em sentença datada de 10 de abril de 2009, o juiz Eduardo Tadeu Thon, da 10a Vara do Trabalho de Goiânia, conclui que a petição inicial da empresa não traz alegações nem contém prova "capaz de elidir os fatos registrados nas autuações, os quais se tem por verdadeiros em razão da presunção de legitimidade juris tantum dos autos de infração".
O juiz, portanto, não acolheu a justificativa da "dupla visita". Eduardo sublinhou que a norma citada se refere a "estabelecimentos ou locais de trabalho recentemente inaugurados ou empreendidos" e que, em fevereiro de 2008 (quando a Brenco foi autuada), a empresa "tinha pelo menos cinco filiais instaladas e em funcionamento".
A finalidade da "dupla visita", completa o magistrado do Trabalho, é permitir que empresas nascentes tenham tempo para se estruturar, "a fim de que possam criar procedimentos administrativos aptos ao cumprimento da legislação trabalhista, assim como levantar os recursos necessários à sua efetivação". "No caso, a requerente [Brenco] tinha vasta estrutura e experiência administrativa decorrente da operação das diversas filiais. Tinha também recursos suficientes para estruturar tempestivamente as condições de trabalho", acrescenta. "As grandes empresas têm que primar pelo planejamento e pela organização, pois dispõem de recursos humanos e materiais para tanto. A requerente tinha amplos recursos e pessoal capaz de organizar alojamentos adequados. Dessa forma, a autora, ao contratar empregados sem se assegurar de que teriam condições adequadas, incorreu em culpa, pois agiu de forma negligente".
A "dupla visita" também não foi aceita pela juíza substituta Valéria Cristina de Sousa Silva, da 12a Vara do Trabalho de Goiânia. Na decisão de 14 de abril, ela destaca que o critério "não se aplica, mesmo em se tratando de estabelecimento ou local de trabalho recentemente inaugurado, quando constatadas situações de grave e iminente risco à saúde ou à integridade física do trabalhador (...), como as que foram demonstradas no caso em apreço".
Para Valéria, "a motivação consignada nos autos de infração se baseou em fatos materialmente existentes e juridicamente adequadas ao resultado obtido pelo agente administrativo". Ela argumenta que "todas as infrações à legislação trabalhistas constantes dos autos de infração" no caso estão "suficientemente demonstradas" e que foi possibilitada à empresa "o exercício do direito de ampla defesa e contraditório perante o órgão administrativo, não havendo nos autos elemento hábil para invalidar o procedimento fiscalizatório impugnado".
(Por Maurício Hashizume, Repórter Brasil, 23/05/2009)