O WTTC, por importante que seja, dura poucos dias, mas Santa Catarina está para receber, com banda de música e portas escancaradas, bilionários investimentos espanhóis (e de outras origens) em empreendimentos imobiliários voltados para o turismo. Nosso querido governador, quando se trata de coisa estrangeira, arregaça-se todo em sorrisos, porque, se é estrangeiro, deve ser ótimo. E a paisagem dos sonhos, afirmaram mais de uma vez, parece ser aquela que se descortina em Marbella, na Espanha. Há pouco tempo, sete fiscais da Fatma foram até lá ver a excelência dos espetaculares loteamentos de luxo, daqueles que têm marinas e tantas outras novidades. Novidades tantas que eles até tiveram que ver pessoalmente, “para entender melhor” do que se tratava.
Pois bem, como um pouco de bom senso (e caldo de galinha) não faz mal a ninguém, dei-me ao trabalho de traduzir (com meus lamentáveis conhecimentos do portunhol), artigo publicado ontem no jornal El Pais, para o qual me chamou a atenção o arquiteto Alfred Biermann. Mostra, nas palavras de um escritor espanhol, o que outros europeus pensam do que espanhóis têm feito com o seu litoral.
E dá uma idéia de como esse “progresso arrasador” pode ter ligações profundas e graves com a corrupção. O autor, por coincidência, faz uma referência nada elogiosa justamente ao trecho do litoral espanhol que tanto tem encantado o mimético governo LHS: “essa peculiar jóia da coroa da corrupção, que tem sido Marbella”.
O texto é um pouco longo, mas indispensável para todos que, como nós, vivemos em destinos turísticos e nos preocupamos com o mundo em que viverão nossos filhos e netos. Ao final, coloco os links (ou enlaces, ou ligações) que levam para os textos originais tanto do artigo, quanto do estudo a que o artigo se refere. E ao blog do autor.
Leiam com atenção, e bom proveito.
O grande roubo (“El gran saqueo”)
“Vocês logo entenderão que não tenho o hábito de ler relatórios do Parlamento Europeu, nem de nenhum outro Parlamento; entretanto, por insistência de um amigo jurista, li um documento que recomendo a quem goste de literatura de terror: trata-se do relatório elaborado pela deputada dinamarquesa Margrete Auken sobre “o impacto da urbanização extensiva espanhola sobre os direitos individuais dos cidadãos europeus, o meio ambiente e a aplicação do Direito comunitário”. É um texto de 30 páginas que se pode ler tanto como uma narrativa apavorante, quanto como um pequeno tratado sobre os piores comportamentos em matéria de política e moral.
De fato, eu introduziria o relatório da senhora Auken como leitura obrigatória em escolas e universidades e, além disso, exigiria que todo candidato a ocupar um cargo público o conhecesse detalhadamente. Vocês se perguntarão por que mostro tanto entusiasmo por esse documento redigido com a falta de graça que caracteriza esse tipo de texto e a resposta é que ele pode ser considerado um espelho contundente que reflete, sem enfeites ou hipocrisia, a nojeira incrustada sordidamente na nossa vida pública.
O que chama mais poderosamente a atenção, já de saída, é a conspiração de silêncio que cerca o assunto e que se explica pela vergonhosa aliança dos eurodeputados socialistas e populares espanhóis (N. do. T.: a direita e a esquerda, os dois principais partidos), no momento de rejeitar o relatório Auken que, apesar disso, foi aprovado pelo Plenário do Parlamento Europeu no final de março, por 349 votos contra 110, com 114 abstenções. Uma esmagadora maioria a que se opuseram até o fim populares e socialistas. Posição tão lamentável desses últimos que, segundo publicaram os jornais do dia seguinte à votação, Michael Cashman, também socialista e autor de um relatório prévio sobre o tema, acabou votando a favor da resolução.
Lido o texto não se estranha, em absoluto, aquela conspiração de silêncio, pois são tantos os ali retratados, que se acaba compreendendo como um escândalo de tais dimensões tenha conseguido ficar na sombra, permanente disfarçado, por décadas. Prestem atenção, além disso, que uma vez condenada severamente a Espanha pela impunidade que cerca a corrupção, nem mesmo depois disso nossas instâncias parlamentares fizeram eco à resolução européia e, cúmplices entre si os diversos partidos, continuaram a alegre política de colocar a cabeça debaixo da asa.
Pessoalmente, a sensação mais desagradável que ficou depois da leitura do relatório Auken é que o grande roubo, a devastação sistemática do litoral espanhol, e não só do litoral – uma devastação que afetará a várias gerações, que apontarão a nossa como culpada –, é coisa que tenha ocorrido durante a democracia e não antes, no regime de Franco. Os destroços herdados do franquismo se multiplicaram, nas décadas democráticas, até limites insuportáveis. A conclusão não é difícil: nossa democracia tem sido tão fraca e tão pouco vigilante que pariu uma autêntica antidemocracia que põe em cheque, como atualmente se está comprovando, muitos dos nossos supostos progressos.
Esta idéia inquietante se desenvolve exaustivamente no relatório, com uma relação minuciosa de fatos igualmente inquietantes, cujos protagonistas têm em comum a ganância, uma concepção mafiosa da política e um sentimento de impunidade que se torna mais irritante pelo descaramento com que se manifesta. Se levarmos a sério Auken e o Pleno do Parlamento Europeu, a responsabilidade pelo desastre se propaga por todos os círculos do Estado espanhol, desde o mais abrangente, ao mais local. Neste peculiar conto de terror se menciona com a mesma dureza a Generalitat valenciana, que está nas mãos dos populares, quanto a socialista Junta de Andalucía, organizadora de diversas pilhagens em Almería e sustentadora, por ação ou omissão, dessa peculiar jóia da coroa da corrupção, que tem sido Marbella. Assim como ocorre em todo bom conto de terror, o texto também tem alguns episódios cômicos, como as armadilhas que diversos funcionários armaram para as comissões de investigação enviadas por Bruxelas ou os divulgados protestos de inocentes prefeitos, queixosos da intromissão dos narizes nórdicos nas suculentas reclassificações dos lotes mediterrâneos.
A estas alturas e com muralhas de concreto por todos os lados, sabemos perfeitamente que só à sombra de políticos aproveitadores foi possível tecer a teia de especulação e ganância da qual agora parecemos lamentar-nos. Sem dúvida, o mais grave é que já sabíamos disso. Estes anos de destruição do território do patrimônio passaram diante da vista de todos. Bastava tomar o Euromed (N. do T.: trem de alta velocidade no corredor mediterrâneo, entre Barcelona e Alicante) para comprovar o que acontecia na costa castelonense ou alicantina; bastava notar o crescimento vertiginoso do preço das casas, apresentado freqüentemente como sinal de nosso progresso coletivo, para perceber que alguma coisa nauseabunda se cozinhava ao nosso redor.
Ao nosso redor? Com seu estilo cru, Margrete Auken põe o dedo na ferida ao descrever a corresponsabilidade dos cidadãos na silenciosa aceitação do delito. É verdade que à frente do cortejo da corrupção marcharam os políticos vendidos, especuladores ou avarentos e agiotas fraudulentos, mas e atrás deles? Diante do conchavo de incorporadores imobiliários, vereadores e instituições financeiras, o que faziam os juízes? Segundo Auken, pouco. E o pouco que faziam, faziam tão lentamente que era como se não tivessem feito nada. A polícia estava no mesmo ritmo dos juízes. Mas os demais estamentos da cidadania também não ofereciam resistência. Os meios de comunicação reagiram tarde e os cidadãos acabaram ficando horrorizados mais como consumidores do que como cidadãos.
Vai até aqui o conto de terror com que a senhora Auken descreveu vivamente, com ingenuidade nórdica e com toda a razão do mundo, o grande roubo do que pertencia ao futuro, por nossos modernos predadores. Quase nada mais se pode adicionar ao quadro traçado que, em boa medida, explica as dramáticas percepções sobre a atual crise econômica.
Ainda que, pensando bem, talvez se possa acrescentar alguma coisa: o grande roubo material de todos esses anos, gerador de enormes fortunas e de danos irreparáveis, não teria sido possível se, paralelamente, não tivéssemos incorrido no grande roubo, das consciências, do que agora chamamos de “falta de valores”, “novorriquismo” e coisas semelhantes, mas que nos anos de opulência, ou que acreditávamos opulentos, estabeleceu uma sólida cadeia de cumplicidades entre fraudadores e futuros fraudados, unidos uns aos outros pelo sonho do dinheiro – sonho, então pesadelo para as vítimas – e pela confusão entre bem estar e benefício. Obrigado, senhora Auken.”
Por Rafael Argullol, escritor – 12/05/2009
Para ler o artigo original, em espanhol, no site do El País, clique aqui.
Para ler o relatório Auken (em português de Portugal) clique aqui.
Para conhecer o autor, clique aqui.
(Por Cesar Valente, De Olho na Capital, 13/05/2009)