Um dos antropólogos que mais tem estudado a situação dos índios Guarani-Kaiowá e Ñandeva, do Mato Grosso do Sul, o ítalo-argentino Fábio Mura, deu uma entrevista recentemente na qual apresenta uma visão diferente sobre as causas de tantos assassinatos entre os Guarani e tantos suicídios.
Segundo Fábio Mura, não é só a proporcionalmente pequena quantidade de áreas de terras onde vivem os Guarani atualmente que provoca a situação calamitosa de mortes entre eles. Há elementos culturais próprios que os diferenciam. Os Terena, por exemplo, que também vivem em pequenos lotes de terras, ao contrário dos Guarani, não se matam entre si como os Guarani. Por sua vez, surpreendentemente, entre os Guarani do Paraguai, cujas terras são mínimas e sua população ainda maior, também não ocorre tanta tragédia humana.
Então, o que pode ser?
Fábio Mura dá, em primeiro lugar, uma explicação antropólogica baseado na teoria do parentesco. Diz que os Guarani se constituem em famílias extensas auto-suficientes. Quando há conflito dentro dessas famílias, ocorrem cisões e saídas das partes litigantes. Daí tornam-se "inimigas" e, para que a sociedade continue fluindo, é preciso que os "inimigos" vivam longe uns dos outros. Quando, por necessidade, passam a viver juntos, aí vivenciam uma grande tensão, o que resulta em frustrações mútuas, portanto, em brigas, enfim, em violência.
Para Mura, os Guarani não gostam de socializar com famílias inimigas. Ora, mas quem gosta? Ninguém, claro. Nenhum povo indígena. Mesmo assim, muitos convivem com inimizades potenciais porque têm instituições culturais mediadoras. Portanto, a pergunta que se impõe é por que os Guarani não criaram instituições de mediação cultural e social entre famílias inimigas. Pergunta-se ainda, e no Paraguai, com os mesmíssimos Guarani, por que isso não se dá? O que têm os índios Guarani do Paraguai que os do Brasil não têm? Ou, o inverso. Parece, portanto, que essa teoria não se coaduna com a realidade empírica e comparativa do mundo guarani. Há de haver outros fatores que levam à inimizade feroz entre famílias extensas no Brasil e a incapacidade putativa da cultura guarani em não conseguir criar instituições culturais de mediação.
Daí vem a segunda explicação, desta vez de cunho histórico: desde a década de 1960, as terras que os Guarani utilizavam de alguma forma, mesmo que formalmente só possuíssem oito (8) terras indígenas demarcadas, serviam de escape às brigas internas entre famílias. Até então, no Mato Grosso do Sul, havia um horizonte além das reservas indígenas onde existiam matas supostamente livres, onde as famílias se refugiavam das brigas internas e formavam novos "tekohá", novas terras para habitar. A partir do final dessa década, e intensificando-se cada vez mais, as terras "livres" passaram a ser tomadas por fazendeiros e os Guarani foram se confinando cada vez mais. Esta é a versão histórica de Fábio Mura.
Acontece, entretanto, que é a partir da década de 1970-80 que diversos grupos e lideranças guarani partem para a luta pela demarcação de novas terras e, realmente, novas terras guarani começam a ser reconhecidas e demarcadas pela Funai. De oito terras demarcadas na época do SPI, os Guarani passam a ter 28 terras demarcadas até agora, com mais umas quatro ou cinco em processos finais de demarcação. Portanto, a segunda teoria explicativa parece também sofrer de baixa comprovação histórica.
É claro que essa explicação é reforçada pelo fato de que, nessas últimas três décadas, houve um aumento populacional exponencial dos Guarani, particularmente em algumas terras indígenas, como Dourados e Amabai, que quadruplicaram suas populações. Assim, mesmo com novas terras, elas não são suficientes para se adequar à necessidade de famílias ficarem longe umas das outras.
A terceira teoria explicativa é a presença constante do branco, especialmente da estrutura do Estado (cita a Funasa, mas ignora a Funai) que impinge sobre a liberdade dos índios, criando novas regras e restrições ao seu comportamento cultural. A escola seria também uma instituição restritiva. Aqui nada é dito sobre os diversos cultos religiosos existentes nas terras Guarani, em especial de evangélicos, mas também de católicos e umbandistas. Nem tampouco as Ongs, os políticos, as prefeituras, todas impondo discursos novas e exigindo novos comportamentos dos Guarani.
A quarta teoria explicativa é propriamente cultural. Segundo Mura, a cultura guarani é muito introspectiva e os indivíduos se abatem magoadas e ridicularizados por atos minimamente inadequados ao comportamento padrão que essa cultura espera deles. Este sentimento de inadequação é piorado especialmente em virtude da imposição da cultura exógena, brasileira, que requer outro tipo de comportamento, ao qual os mais jovens buscam emular. A inadequação que um jovem sente leva a um sentimento radical de mágoa, tristeza profunda e angústia, chamado nhemyrô. Daí para o suicídio entre os jovens é um passo simples. Segundo Mura, os Guarani se sentem atraídos para o suicídio como se estivessem sendo chamados por aqueles que já morreram. Nas palavras de Mura, "Os relatos das pessoas que tentaram se suicidar é que sentiram-se chamadas como Hércules (sic), que ouvia o canto das sereias na Odisséia". (Hércules?! Não seria o Ulisses?)
Enfim, na entrevista abaixo, o antropólogo Fábio Mura abre o verbo e corajosamente diz coisas que o público antropológico em geral não tem ouvido sobre a questão guarani. São explicações mais sofisticadas do que aquelas dadas pelo CIMI e outros antropólogos, mas ainda assim, carecem de mais embasamento empírico, de mais profundidade histórica e de mais clareza.
(Blog do Mércio, 18/05/2009)