Uma combinação de urgências sanitárias e interesses comerciais relacionados com a atual epidemia de gripe A/H1N1 dominarão a partir de hoje as sessões da Assembléia Mundial da Saúde. Ministros e outros representantes dos países-membros da Organização Mundial da Saúde discutirão a real magnitude da gripe, o acerto das políticas adotadas para conter sua expansão e a perspectivas para os países pobres terem acesso a antivirais apropriados e eventuais vacinas. O tom dos debates será áspero, de acordo com declarações de delegados de países em desenvolvimento.
Fontes próximas à OMS reconheceram que esperam criticadas pela reação da instituição, considerada às vezes exagerada, desde o surgimento do foco há cerca de um mês na América do Norte. Alguns países provavelmente irão protestar, começando pelo México sue suporta perdas financeiras elevadas devido ao estigma surgido após reconhecer os primeiros casos, disseram as fontes.
Pode-se esperar que, ao fim de uma semana de sessões, a assembléia faça um chamado à moderação e aconselhe a levar as coisas mais a sério, mas sem pânico, sem exageros, arriscou a fonte. Entre esses especialistas destacava-se a interpretação do cientista espanhol Juan Ramón Laporte, que na semana passada disse em seu país que a OMS considerou esta crise sanitária “como uma oportunidade para recuperar liderança e visibilidade”. E isso funciona com perfeição porque o mundo está dependente da organização, acrescentou. Entretanto, essa política também pode ser contraproducente, pois, se amanhã um grupo de cientistas independentes determinar que não havia razão para tanto alarme nem tamanha gravidade, isso irá desmerecer a OMS, ressaltou Laporte.
Os especialistas que criticam os supostos exageros sobre a epidemia comparam o fenômeno com a gripe normal, ou estacional, que se agrava durante o inverno em cada hemisfério. Nos Estados Unidos, a gripe estacional causa cerca de 30 mil mortes por ano, equivalente a cerca de 1.800 mortes em um período de três semanas, que é, aproximadamente, o tempo da atual epidemia. Mas, nesse período, a gripe suína apenas causou quatro mortes nesse país, afirmaram. Desses dados se conclui que se trata de uma doença – é certo – mas, bastante benigna e com pouco risco de morte, como se verifica na Europa, que a cada ano registra 22 mil mortes pela gripe estacional e até agora não tem nenhum caso de morte em razão da gripe suína.
Exagera-se também quando se destaca em excesso o giro pernicioso que o vírus pode adotar no caso muito provável de sua mutação. Mas, também pode ocorrer o oposto, que a cepa mude para desaparecer ou simplesmente se estabilizar, afirmaram os especialistas. De todo modo, diante de uma realidade potencialmente perigosa e desconhecida aconselha-se “toda a prevenção possível”. Nesse campo, os 11 países do escritório regional da OMS para o sudeste asiático, conhecido pela sigla em inglês Searo, ressaltaram que a gripe A/H1N1 “não teria se expandido de forma tão ampla” se a rede mundial de vigilância da gripe realmente tivesse sido eficaz.
Há dois anos reclamamos a revisão do sistema de vigilância da gripe, afirmaram Bangladesh, Butão, Coréia do Norte, Índia, Indonésia, Maldivas, Myanmar, Nepal, Sri Lanka, Tailândia e Timor Leste. As queixas destes 11 países foram ouvidas no último final de semana durante a Reunião Intergovernamental sobre Preparações para uma Pandemia de Gripo: intercâmbio de vírus gripais e acesso a vacinas e outros benefícios. Nessa reunião, que prosseguirá durante a Assembléia, são debatidos os efeitos do lucro das empresas farmacêuticas e médicas no acesso seguro dos países pobre s antivirais e eventuais vacinas em condições econômicas acessíveis. Os interesses comerciais dos laboratórios que fabricam estes medicamentos ou uma possível vacina são gigantescos, disse à IPS uma fonte próxima à OMS.
O grupo Searo e a maioria dos demais países em desenvolvimento afirmam que as medidas de resposta à atual epidemia “não são justas nem transparentes”. Até agora, a OMS não apoiou nem recomendou que os países com capacidade produtiva comecem a fabricar seu próprio fornecimento de genéricos antivirais, questionou o grupo. Todos os países industrializados assinaram acordos com os laboratórios para garantir que terão as primeiras remessas da produção de vacinas contra a epidemia, deixando os países em desenvolvimento entregues à sua sorte, denunciou o Searo. As nações sem desenvolvimento propõem a adoção de um Acordo Modelo de Transferência de Material que regule o envio de amostras do vírus, disse Sangeeta Shashikant, pesquisadora do escritório em Genebra da Rede do Terceiro Mundo, com sede na Malásia.
Outra fonte próxima à OMS recordou que quando a gripe aviaria (H5N1) se expandiu pela Ásia a partir de 1997 e atingiu picos de infecção na Indonésia com 140 casos de contágio em humanos, e em outros países, Jacarta entregara de forma gratuita amostras do vírus aos Centro Colaboradores da OMS, entidades independentes, públicas e privadas, que espalhadas pelo mundo dão apoio à instituição internacional. Essas amostras chegaram às mãos de fabricantes de medicamentos dos Estados Unidos que depois venderam seus produtos contra a gripe do frango à mesma Indonésia, disse a fonte. Nesses envios de amostras, a OMS teve um papel ambíguo, mais inclinado aos interesses dos Estados Unidos e, em geral, dos países do Norte, ressaltou.
Por esse motivo, os países em desenvolvimento cobram no grupo intergovernamental a adoção do acordo modelo sobre intercâmbio de vírus, acesso a vacinas e outros benefícios, disse Shashikant à IPS. A presidente do grupo, a australiana Jane Halton, claramente desequilibra os debates em favor das nações industrializadas, disse a fonte. Por sua vez, Shashikant estimou que os países industrializados podem chegar a desconhecer o acordo modelo porque “simplesmente não querem avanços nessa área”. Eles não aceitam a imposição de nenhum tipo de obrigações aos seus fabricantes para compartilhar a propriedade intelectual e os demais benefícios, que são os aspectos tecnológicos e de conhecimento, insistiu.
(Por Gustavo Capdevila, IPS / Envolverde, 18/05/2009)