A semente que fez germinar o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) no Rio Grande do Sul é a mesma que corrói a sua existência: o arrendamento ilegal das glebas concedidas pelo governo para as famílias tirarem o seu sustento. A prática, proibida pelo Estatuto da Terra, equivale a uma reforma agrária às avessas.
Pois essa questão provocou um racha no MST, que já não controla com mão de ferro os 322 assentamentos no Estado. Para alguns dos antigos dirigentes sem terra, o arrendamento de áreas da reforma agrária para empresários rurais é uma heresia. Para outros, virou rotina. Nos últimos meses, a Polícia Federal e o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) identificaram e reprimiram contratos ilegais entre granjeiros e assentados nos municípios de Viamão, Eldorado do Sul e Nova Santa Rita. Mas a prática está espalhada pelo Estado. O próprio Incra é acusado de fazer vistas grossas para arrendamentos, num polêmico processo judicial que resultou em denúncia contra o superintendente regional da autarquia da reforma agrária, Mozar Dietrich, por suposta coação aos arrendatários.
Além da expansão dos arrendamentos ilegais entre as 12,3 mil famílias assentadas no Rio Grande do Sul, um outro tipo de crime vem crescendo – o contrato de gaveta da venda do lote. No acerto, o antigo dono vira assalariado do comprador e fica vivendo no local, servindo de disfarce para operação ilegal, conforme Zero Hora comprovou em várias reportagens desde 2001. Por se tratar de negócios criminosos, não há registros oficiais. Ou seja, as autoridades não sabem o número de arrendamentos e vendas ilegais de lotes no Rio Grande do Sul, mas suas consequências podem ser visualizadas.
Como explicar o arrendamento em áreas excelentes para a lavoura?
A história da semente que está corroendo o MST se inicia com a indignação de um índio perante a miséria em que o seu povo vivia, imposta pelo arrendamento clandestino de suas terras. Nelson Xangrê, o cacique da tribo caingangue de Nonoai, no norte do Estado, desencadeou uma rebelião na madrugada de 4 de maio de 1978. Armou seus guerreiros com porretes, flechas e revólveres e expulsou da reserva indígena 1,5 mil famílias de agricultores brancos, que haviam arrendado a área com o incentivo de políticos. "Aos brancos expulsos, eu disse que fossem lutar pela reforma agrária em outro lugar. Não ali, nas nossas terras ", recordou a Zero Hora, no ano passado, o cacique Xangrê.
Os agricultores seguiram o conselho. Os expulsos formaram 35 acampamentos de sem-terra à beira das estradas da região. O mais famoso deles era na Encruzilhada Natalino, um aglomerado de miseráveis às margens da rodovia que liga Passo Fundo a Ronda Alta e que entrou na história do Brasil como o “berço do MST”. Aprendendo a lição dada por Xangrê, o MST nasceu pregando contra o arrendamento de glebas dos assentados. Em três décadas, pressionou a União e o Estado a assentar famílias em 12,3 mil lotes, com média de 20 hectares cada um.
A maior base dos 20 anos de invasões na pressão por reforma agrária era a Fazenda Annoni, um assentamento de 412 lotes feito nos anos 80, ao lado da Encruzilhada Natalino. O quadro se inverteu na última década. A influência e o poder dos arrendatários cresceram nos assentamentos. A tal ponto que na Annoni, onde vive parte dos líderes regionais e nacionais do MST, 30% dos lotes estão arrendados. A estimativa é de chefes do movimento. A surpresa é ainda maior porque, entre os arrendatários e compradores, há dois ex-líderes dos sem-terra.
Em alguns casos, o abandono, a venda ou o arrendamento de lotes têm razões fundadas na miséria vivida pelos assentados. Muitas vezes, eles são jogados em terras ruins, quase sem assistência. Mas o que explica que, em áreas excelentes para a lavoura, como a Fazenda Annoni, também exista arrendamento? "O movimento cresceu demais e acabou se complicando", arrisca Darci Maschio, um dos líderes e fundadores do MST no Brasil.
Ele acertou. Nos anos 90, foram incorporados às fileiras da organização os trabalhadores boias-frias do Pontal do Paranapanema, em São Paulo, além de ex-garimpeiros do sul do Pará. No Rio Grande do Sul, os moradores da periferia foram levados para os acampamentos. Por serem pessoas urbanas, elas mudaram o perfil político do MST.
(Zero Hora, 17/05/2009)