De 150 exames de Aids coletados neste ano no Vale do Guaporé, 80 apresentaram resultado positivo. O governo estadual tentou manter a informação em sigilo até a véspera deste 13 de Maio, data do 133º ano de assinatura da Lei Áurea, que aboliu a escravidão no Brasil.
Pode-se dizer que os dados fazem parte daquilo que alguns chamam de “processo de africanização” de Rondônia. O Vale do Guaporé é marcado por uma paradisíaca Reserva Biológica povoada por comunidades ribeirinhas, indígenas e remanescentes de quilombo cuja territorialidade é vital para sobrevivência e organização. Os dados sobre a elevada incidência de Aids foram coletados pelo Instituto de Pesquisas em Patologias Tropicais (Ipepatro) e encaminhados para a Secretaria Estadual de Saúde. Dois pesquisadores do Ipepatro confirmaram os números à reportagem, porém se recusaram a comentá-los sob o argumento de que a questão é de competência da Secretaria de Saúde.
A coordenadora estadual do programa DST/Aids, Eliana Alves da Silva Mendes, foi procurada com insistência pela reportagem. Ela não atendeu a mais de 20 ligações nem respondeu à mensagem de texto enviada para o celular com pedido para que se pronunciasse a respeito da situação de saúde no Vale do Guaporé. A reportagem apurou que três prostíbulos funcionaram na região nos últimos anos e que as populações ribeirinhas costumam auxiliar turistas que pescam na Reserva Biológica. Com freqüência, a área também é percorrida por políticos e empresários do Estado, que costumam se relacionar com as mulheres do lugar, a quem costumam chamar pejorativamente de “piranhas de barranco”.
A Reserva Biológica do Vale do Guaporé foi criada em 1982 e seu plano de manejo elaborado dois anos depois. Com 603 mil hectares, está localizada à margem direita do rio Guaporé, ao sudoeste do Estado. Após anos de intensas pesquisas, o professor Marco Antonio Domingues Teixeira, do Departamento de História da Universidade Federal de Rondônia (Unir), é o maior estudioso no Estado da vida nas comunidades remanescentes de quilombo no Vale do Guaporé.
- As condições de vida da população de Santo Antônio se igualam aos padrões de miséria das regiões mais pobres da África. Casas construídas em palha, absolutamente desprovidas de mobília e de qualquer tipo de conforto, ausência total de acesso aos benefícios da civilização no século XXI. Dentro das casas. Começamos a fazer outro tipo de pesquisa, recentemente, junto com pesquisadores do Ipepatro. Foram coletados barbeiros e já há dois casos diagnosticados de mal de Chagas. Há uma possibilidade aventada de que uma parte considerável da comunidade esteja contaminada pela doença. Se isso se confirma, é uma bomba na questão sanitária e médica dentro do Estado de Rondônia - afirma Teixeira em entrevista exclusiva ao Blog da Amazônia.
Santo Antônio do Guaporé é uma comunidade de pretos descendentes de antigos quilombolas transportados pelos portugueses para a região durante o ciclo do ouro em Vila Bela e no Guaporé. Teixeira explica que as populações descendentes de escravos coloniais do Vale do Guaporé preferem utilizar o termo preto ao termo negro. Segundo os moradores, negro os reduz à escravidão, enquanto preto implica no reconhecimento de sua liberdade. A comunidade existe há mais de dois séculos e garantiu a ocupação territorial para o Brasil nesta área de fronteira com outros povos. Sobreviveram como pequenos agricultores e extrativistas, vivendo sob os regimes de enchente e vazante das várzeas do rio.
Segundo Teixeira, a comunidade está ameaçada pela criação da Reserva Biológica do Guaporé, que abrange áreas que incluem terras da comunidade, que passou a sofrer um processo de expulsão. "A comunidade passou a ser vítima de uma situação de intolerância ambiental, isto é, aquilo que alguns antropólogo chamam de racismo ambiental", acrescenta o pesquisador da Unir.
Leia os melhores trechos da entrevista:
Altino Machado - Qual a situação das áreas quilombolas em Rondônia?
Marco Antonio Domingues Teixeira - A situação hoje é de início de um processo de reconhecimento e regularização fundiária. Temos aproximadamente 12 comunidades identificadas, sendo que sete delas receberam certificação reconhecimento pela Fundação Palmares. Três estão em procedimentos de regularização dos territórios junto ao Incra. Dessas três, somente a comunidade de Jesus, localizada no Vale do Rio São Miguel, teve as suas terras tituladas. Pedras Negras está sobreposta a uma área de Reserva Extrativista. Por isso, o processo anda bem lentamente, embora a situação seja promissora porque o governo estadual não criou obstáculos ao reconhecimento das terras.
Quantas pessoas existem nessas comunidades?
Teixeira -Isso é muito flutuante. A comunidade de Jesus, por exemplo, é uma grande família, com 70 e poucas pessoas, todas descendentes de um único casal. Pedras Negras, no auge do período da borracha até a década de 70, chegou a ter 97 famílias. Hoje tem apenas 20 famílias. Era uma localidade com cinco grandes comércios e cartório. Hoje não existe mais nada disso. Mas Pedras Negras ainda leva a vantagem de que tem luz elétrica, uma escola e um posto de saúde.
Onde a situação é mais grave?
Teixeira - É em Santo Antônio do Guaporé. Nós temos documentação sobre sua existência há mais de 200 anos. Na década de 1980, quando foi criado o Estado de Rondônia, uma das medidas tomadas foi a criação da Reserva Biológica do Guaporé, que se sobrepôs à área onde viviam populações de remanescentes de quilombos e onde viviam duas populações indígenas, os puruborá e os miguelem. À época, o extinto IBDF procedeu a retirada dessas populações. Isso aconteceu sem que tenham sido indenizadas e reassentadas. Foram jogados para onde bem quisessem ir, o que dizimou as comunidades. Santo Antônio bateu pé e não saiu. A partir disso, passou a ser vítima de uma situação de intolerância ambiental, isto é, o que alguns antropólogo também chama de racismo ambiental. Santo Antônio perde uma série de direitos, de liberdades constitucionais. A escola permaneceu fechada durante muito tempo e hoje funciona numa situação de total precariedade. A população perdeu o direito a ter luz elétrica, o que é um contracenso, pois a sede do Ibama na Reserva Biológica tem luz elétrica com moto a gasolina poluindo do mesmo jeito. Além disso, a comunidade perdeu o posto de saúde e tem suas atividades de caça e pesca restringidas pelo órgão ambiental. A criação de animais foi parcialmente proibida. Os animais quadrúpedes foram retirados. Hoje, só se pode criar aves. Santo Antônio padece de uma série de problemas estruturais. A questão da moradia é muito grave. Eles só podem construir suas casas em palha porque podem sofrer processos caso construam suas casas usando madeira ilegal numa área biológica. A alegação principal do Ibama é que a comunidade ocupa a área mais preservada da reserva biológica. É um contrasenso também porque a área só é a mais preservada da reserva biológica porque eles estão ali, há 200 anos, protegendo aquelas terras.
O que aconteceu com todas as áreas onde as populações foram expulsas?
Teixeira - Nas áreas onde não havia populações ou das quais as populações foram expulsas, os madeireiros entraram e depredaram a reserva.
Quais as condições de vida dessas comunidades na atualidade?
Teixeira - As condições de vida da população de Santo Antônio, hoje, elas se igualam aos padrões de miséria das regiões mais pobre da África. Casas construídas em palha, absolutamente desprovidas de mobília e de qualquer tipo de conforto, ausência total de acesso aos benefícios da civilização no século XXI. Para se livrar, por exemplo, das hordas de mosquitos, têm que queimar palha de coco, panos velhos, o que provoca uma incidência gigantesca de doenças pulmonares e cegueira precoce. Esses males já foram estudados em sociedades de coleta da borracha e sabe-se dos danos causados aos seringueiros com aquele tipo de fumaça. Em Santo Antônio se convive com isso o tempo inteiro. Dentro das casas, começamos a fazer outro tipo de pesquisa recentemente, junto com pesquisadores do Instituto de Pesquisas em Patologias Tropicais. Foram coletados barbeiros e já há dois casos diagnosticados de mal de Chagas. Há uma possibilidade de que uma parte considerável da comunidade esteja contaminada pela doença. Se isso se confirma, é uma bomba na questão sanitária e médica dentro do Estado de Rondônia.
Além disso, o que mais?
Teixeira -As casas não podem ser reformadas. A escola está caindo, o centro comunitário também. Como a comunidade está hoje numa área de reserva biológica, o poder público alega que, por conta das determinações do Ibama, não pode reformar nada. O próprio Ibama inviabiliza uma série de iniciativas da comunidade. Não se pode alfabetizar o adulto porque ele tem que trabalhar durante o dia. Ele teria que ser alfabetizado durante a noite, mas não se pode ter energia elétrica e ele permanece na ignorância.
No dia 2 de junho será realizada uma reunião da Câmara de Conciliação da Presidência da República…
Teixeira -Essa é uma Câmara composta por diversos órgãos do governo federal, como a Fundação Palamares e Incra, que são instituições favoráveis à causa de regularização fundiária das terras de quilombo, além de outros órgão que não favoráveis, como o Ministério do Meio Ambiente. Advocacia Geral da União e o Ibama. Há um conflito anunciado. Temos aqui uma comunidade que reside ali muito antes da criação da Reserva Biológica do Vale do Guaporé. Se alguém invadiu alguma coisa, com certeza foi a Reserva Biológica que invadiu a área dos quilombolas. É uma situação complexa porque todo mundo é a favor da preservação ambiental, mas isso não pode ser feito ao custo da sobrevivência de uma população que, se transferida de local ou manejada, vai perder a sua identidade, a sua cultura, os seus vínculos com o meio ambiente.
O que tem acontecido com as pessoas que foram retiradas ou saíram das comunidades quilombolas de Rondônia?
Teixeira -Os homens adultos viraram, quando conseguiram, empregados de sítios, caseiros, capinadores de terrenos. As mulheres foram ser empregadas domésticas e os jovens caíram na prostituição e no tráfico de drogas, povoando as prisões de Guajará-Mirim.
Como é a relação dos remanescentes de quilombo com a sociedade envolvente?
Teixeira -Há um desconhecimento e um descaso por parte da sociedade em relação ao problema do quilombola. Isso é histórico também. Quando o governo militar projetou a colonização de Rondônia, ignorou as populações ribeirinhas. Doou para o colonos as terras que eram ocupadas pelos ribeirinhos e não estavam regularizadas em questão de titulação fundiária. Essas populações foram ignoradas, como é o caso da comunidade de Jesus, que ocupava uma área muito maior do que tem hoje. Antes do processo de regularização fundiária, viu as suas terras minguarem a dois lotes, como proposta dos fazendeiros que tomaram tudo, especialmente os seringais e os castanhais. Outra questão importante envolve a perda acentuada da identidade cultural. Isso é observado no Vale do Guaporé, inclusive em manifestações tradicionalíssimas como a festa do divino, que tem sido descaracterizada progressivamente. Perdem a identidade amazônica pela identidade sulista e perdem a capacidade de relacionar de forma sadia e equilibrada com o meio ambiente.
Apesar de tudo isso, ainda existe horizonte?
Teixeira -Eu vejo com bons olhos o trabalho do Incra, embora eu ache esse trabalho muito lento. Mas é indispensável que haja a regularização territorial. A terra de quilombo não se transforma em uma propriedade privada. Cada quilombola tem o seu lote. Ela é uma terra de uso comum. São áreas de coleta e manejo, o que contribui para preservar o espaço natural. Santo Antonio, por exemplo, é uma muralha de defesa da Reserva Biológica do Guaporé e não um inimigo.
(Blog do Altino Machado / Amazonia.org.br 13/05/2009)