Camadas de dejetos param a água, mas espalham doenças
Aba Dione, 7, encontrou seu fim há algumas semanas num canto cheio de detritos de uma casa abandonada, que parecia um lugar tão bom para brincar quanto qualquer outro, já que as demais opções eram lixo e mais lixo. Só que, neste caso, o espesso tapete de sacolas e garrafas plásticas amassadas, trapos de tecido, sandálias velhas e sujeira boiava enganadoramente sobre mais de um metro de água. Aba caiu e se afogou.
O lixo deve ter parecido seguro para o menino porque está em todas as partes da favela miserável e descolorida em Médina Gounass, vizinha a Dacar, a capital senegalesa. Distribuído sob encomenda, a poucos centavos por carga, por carroças que trafegam pelas ruas de terra do bairro de Médina Gounass, em Guédiawaye, o material é tão penetrante quanto o sol do meio-dia que o cozinha. As pessoas usam-no para amparar casas e ruas alagadiças nesta área próxima à costa do Atlântico; elas não têm escolha.
O lixo, compactado e coberto por uma fina camada de areia, é usado para elevar o chão das casas, inundadas regularmente nas curtas porém intensas temporadas chuvosas do verão, ou é colocado nas ruas de terra, que sem isso se transformam em canais. A água permanece durante meses nos terrenos baixos deste ressecado país. Os detritos fazem as vezes de material de construção, um preenchimento essencial para lidar com a água estagnada -barato, prontamente acessível e sempre aumentando. As sobras plásticas dessas malcheirosas encomendas despontam nos lotes arenosos, cobrem o chão entre as precárias casas feitas de blocos de cimento, viram pasto para cabras, playground para crianças descalças e de nariz escorrendo e criadouro para enxames de moscas. As doenças florescem no local, segundo grupos assistenciais: cólera, malária, febre amarela e tuberculose.
A 16 km, na capital, as pilhas de dejetos são um mero traço intermitente da poeirenta paisagem urbana. O lixo em Dacar é atirado sob surradas placas que dizem "Não jogue lixo", e detritos queimam a noite toda em bairros à beira-mar. Sacos de plástico preto, rasgados, decoram arbustos, árvores e cercas de Dacar. Mas é em Médina Gounass que a incontida maré de lixo encontra sua apoteose. "Não é a melhor forma [de viver]", disse Pape Yabandao, pedreiro que trabalhava na parede de uma casa no local. "Mas o que podemos fazer?"
O lixo também tem sido um material de construção indispensável para ele. Por quê?
"Não tenho meios", afirmou. "Se você não tem outras soluções, e se todo mundo aqui usa o lixo, você tem de usar também. Há água na casa e nos quartos." Enquanto ele falava, uma carroça com lixo movimentava uma rua à distância para entregar sua carga. "É um problema de dinheiro", disse Zale Fall, parado perto dali. "As pessoas que vivem aqui não têm condições de comprar areia ou entulho, então são obrigados a chamarem os carroceiros para o enchimento. É pelas nossas crianças. Melhor ter doenças do que morte."
Ami Camara, mãe de Aba, não foi a primeira a perder um filho nos lamaçais ocultos de Médina Gounass. Balançando a cabeça no pátio de um barraco de quatro cômodos onde ela vive com 15 parentes, ela se lembrou de como naquele dia deu banho no filho depois do almoço e o mandou ir brincar. Seus amigos então encontraram seus sapatos, e depois seu corpo. "Tudo que acontece é vontade de Deus", disse a avó do menino, Yaline Ndaye. "Não podemos fazer nada a respeito", acrescentou a mulher, para então se afastar.
Num mundo de ponta-cabeça, onde o lixo é procurado e jogado entre casas, e não retirado, "as pessoas não têm alternativas; estão à própria sorte, só podem contar com si mesmas", disse Joseph Gaï Ramaka, importante cineasta senegalês que fez um documentário sobre um esforço incompleto do governo, o Plano Jaxaay, para construir moradias modernas para pessoas em bairros vulneráveis. "Essa gente se orgulha de ser limpa", disse Ramaka, hoje radicado em Nova Orleans (EUA). "Quando elas têm de comprar lixo, é porque não têm escolha. O lixo pelo menos lhes permite dormir com seus pés fora da água, e nas suas próprias casas."
(Por Adam Nossiter, The New York Times / Folha de S. Paulo, 11/05/2009)